Há algumas semanas, parecia moleza: o mundo estava em recuperação sólida, a crise financeira ficara no passado e o problema agora era coordenar a volta ao crescimento. O principal desafio global seria arranjar substitutos para o consumidor americano que, endividado e mais pobre, limitara suas visitas ao shopping. Bons candidatos à vaga eram os consumidores alemães e chineses, tradicionalmente poupadores, que deveriam de algum modo ser levados às compras.
á não era uma questão fácil. Primeiro pelo volume: a economia americana, a maior do mundo, é igual à soma das três que vêm em seguida, Japão, Alemanha e China. Além disso, o consumidor americano detonava salário e mais o crédito, seus gastos totais representando mais de dois terços do Produto Interno Bruto (PIB). Naqueles outros três países, as pessoas apresentavam, e apresentam, uma propensão maior à poupança — ou por razões históricas, casos de Japão e Alemanha, que passaram por reconstrução pós-guerra perdida, ou por pura necessidade, caso dos chineses, mais pobres, e que não desfrutam de rede pública de seguridade social.
O modelo chinês é voltado para o crescimento do bolo, com o gasto público concentrado em infraestrutura.
As famílias sempre precisaram poupar para pagar médicos, a universidade de um filho ao menos e financiar a velhice. Além disso, para facilitar as exportações (ou seja, as vendas para os consumidores dos outros países, especialmente o americano), a moeda chinesa foi mantida desvalorizada, o que deixa reduzido o poder aquisitivo local.
Portanto, as receitas pareciam óbvias.
Para Japão e, principalmente Alemanha, seus ricos consumidores deveriam ser estimulados a gastar. Como? Reduzindo impostos, por exemplo, de modo a baratear produtos e aumentar a tentação de comprar um carrão bem baratinho. E também barateando as importações, já que esses dois países sempre apresentaram superávits comerciais elevados.
Não custava nada agora comprar mais dos outros países, inclusive dos vizinhos em dificuldade, como Grécia, Portugal e Espanha, caso da Alemanha, que precisavam aumentar suas receitas de exportação para compensar a queda do consumo local.
No caso da China, seguia a receita, o governo precisaria permitir a valorização da moeda para que os locais, mais ricos, gastassem mais. Também seria necessário ampliar a rede de saúde e escola gratuitas e mais a aposentadoria pública, de modo a reduzir a necessidade de poupança.
Faltava combinar, mas era nisso que governos estavam empenhados.
Aí, começou a complicar.
A crise das contas públicas na Europa colocou uma emergência: evitar que algum país da zona do euro desse o calote, o que arrasaria a credibilidade de todo o bloco. Isso foi conseguido. A União Europeia, com apoio do FMI, montou um fundo de US$ 1 trilhão, com programas de financiamento a governos mais endividados.
Mas a crise rachou o enfoque macroeconômico.
Até ali se entendia que os governos poderiam sustentar elevados déficits, gastando diretamente e/ou subsidiando pessoas e empresas, até que a economia voltasse a crescer solidamente com o setor privado. Depois da Grécia, porém, ganhou força a tese de que os déficits têm limites e, além de um certo ponto, provocam mais problemas do que crescimento.
É o momento em que estamos hoje — e que foi o teor das discussões na última reunião do G-20. A divergência se apresenta da seguinte maneira: para um lado, a recuperação econômica é ainda muito frágil e insustentável sem os “estímulos fiscais”, ou seja, gasto público direto, redução de impostos para pessoas e empresas e subsídios sociais, como auxílio-desemprego.
Para essa turma, na qual se incluem o Prêmio Nobel Paul Krugman e o secretário do Tesouro dos EUA, Thimoty Gheitner, deixar o déficit público elevado neste momento é o menor dos males. Sustentam que a redução do gasto público, agora, vai cortar a recuperação e, pois, a chance de aumento da arrecadação via crescimento econômico. Ou seja, uma política de contenção, agora, provocaria depressão e pobreza.
Para o outro lado, no qual se incluem firmemente os governantes da Alemanha e da Inglaterra, é bem o contrário: o aprofundamento e o prolongamento dos déficits públicos vão bloquear a recuperação global. Buracos nas contas públicas criam desconfiança nos investidores (e financiadores desses déficits), que passam a exigir juros cada vez maiores para comprar os títulos dos governos (já está acontecendo) e, no limite, tratam de se livrar desses papéis, levando a uma nova crise financeira.
Reparem, a maior parte desses títulos está na carteira dos bancos e/ou de fundos de investimentos, que guardam a poupança das pessoas e o caixa das empresas. O colapso desses títulos (sua desvalorização acentuada) espalharia uma crise de confiança e quebradeira de bancos, deixaria governos sem dinheiro e o setor privado sem crédito, isso tudo cortando qualquer possibilidade de recuperação.
E os chineses e os alemães nem começaram a torrar grana nos shoppings.
É dilema sobre dilema.
Parecia moleza, mas de repente o mundo ficou muito mais complicado
Fonte: Jornal “O Globo” – 01/07/10
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