O processo do mensalão e a Operação Lava Jato abriram uma batalha sem precedentes entre o estamento jurídico e o político. Ao longo da história brasileira, a relação entre juristas de Estado e o poder foi predominantemente simbiótica. Em troca de prestígio, benefícios e privilégios corporativos, o estamento jurídico removeu obstáculos e não ameaçou os poderosos.
O estamento serviu a governos liberais e autoritários, oferecendo raras demonstrações de insubordinação. Nas poucas vezes em que isso ocorreu foram rapidamente castrados. Getúlio Vargas e os militares não titubearam em suspender as garantias dos magistrados e excluir da apreciação do Judiciário os atos de seus governos de exceção. Mais do que isso, aposentaram compulsoriamente juízes e mesmo ministros do Supremo Tribunal Federal, que ousaram desafiar o poder. Entre os quais, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva.
A ameaça do ministro Carlos Marun de propor o impeachment do ministro Luís Roberto Barroso é uma clara demonstração de que o governo de plantão também não está disposto a tolerar insubordinações por parte do estamento jurídico. A prisão temporária dos homens do presidente, solicitada pela procuradora-geral da República a partir das investigações de “sua própria” Polícia Federal, e autorizada pelo ministro Barroso, tensionou ainda mais as relações entre o mundo político e o estamento jurídico.
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Ao lançar políticos dos mais variados espectros no banco dos réus, a Justiça atraiu para si poderosos adversários, inclusive dentro dos próprios tribunais. Os recentes conflitos no Supremo não devem ser tomados como rixas ou destemperos pessoais. O que está em questão é o tipo de república que se busca construir.
Embora num regime democrático a política deva ter a última palavra, num Estado democrático de Direito a ação política não pode se dar à margem de regras e procedimentos constitutivos da própria formação da vontade democrática.
O que aprendemos nos últimos anos é que o nosso presidencialismo de coalizão, com suas práticas patrimonialistas e corruptas, não consegue se conformar a um Estado de Direito operado por agências de aplicação da lei cada vez mais autônomas.
Distintamente do que afirma o ministro Toffoli, não se trata de uma mera “criminalização da política”, mas sim da criminalização de um modo arcaico de se fazer política. De uma política sequestrada pelo patrimonialismo e pela corrupção. Se no passado o conluio entre empreiteiras e líderes populistas, desenvolvimentistas ou militares nunca gerou maiores aperreios com a lei, isso se deu graças, entre outras coisas, ao papel dócil do estamento jurídico. Na medida em que as instituições jurídicas foram se tornando mais autônomas, o embate entre política e direito se tornou inevitável.
Na próxima semana, por ocasião do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, o STF terá, mais uma vez, que enfrentar essa tensão. Dada a divisão do tribunal e a polarização de nossa política, é arriscado fazer qualquer previsão. Não seria uma surpresa, no entanto, a concessão do HC de Lula, sem que se alterasse a regra da execução provisória (menos ainda da Lei da Ficha Limpa). Uma contradição jurídica, sem sombra de dúvida. Mas uma tentativa de distensionar o conflito entre direito e política.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 31/03/218