Um dos postulados fundamentais da teoria econômica, pelo menos desde Adam Smith, porém, com raízes encontradas em Thomas Hobbes e mesmo em Aristóteles, é a do auto-interesse racional, que implica a inclinação inerente a todo indivíduo em maximizar o próprio bem-estar.
Esse postulado denota o modelo do homo economicus, com a ressalva que, como todo corte epistemológico, o h.e. é uma simplificação da realidade, de modo a permitir que o cientista possa identificar traços observáveis no comportamento do objeto de análise, e, assim, mensurá-los, classificá-los, compará-los e assim por diante. Sendo assim, ainda que o ser humano seja muito mais complexo, modelá-lo como um indivíduo racionalmente auto-interessado permite observar o seu comportamento, pois, na maior parte das vezes, as pessoas realmente agem, no jargão econômico, com o intuito de aumentar a sua “utilidade”. Isso não significa, a bem dizer, que tal comportamento seja necessariamente “egoísta”, pois mesmo o altruísta pode ajudar o próximo por várias razões, inclusive por isso lhe trazer satisfação, essencialmente a mesma que o homem de negócios tem, ao fechar uma transação lucrativa, ou a que um esportista tem, ao quebrar um recorde.
Essa concepção é a que alicerça a teoria da escolha racional, base da economia, e que também é aplicada à política pela teoria da escolha pública. Esse campo do conhecimento desmistifica a ingênua concepção de que os políticos são sujeitos inerentemente bem-intencionados, preocupados tão-somente com o bem comum, visando apenas aos interesses da comunidade. Políticos são indivíduos como todos os demais, e, como tal, são igualmente maximizadores do próprio bem-estar. Isso não significa, por certo, que sejam desonestos ou interessados apenas em vantagens pessoais. Todavia, o seu auto-interesse permite que possamos observar e mensurar o seu comportamento, tal qual a economia tradicional observa o comportamento dos produtores e consumidores. Só que em vez de mercadorias e serviços, temos na política um mercado onde os consumidores são os eleitores, e a moeda, os votos. Ainda que o romantismo da política possa sofrer, o fato é que a ciência ganha muito com essa visão. Sai-se da mera retórica para a observação empírica, testável, objetiva.
Aplicando-se esse ferramental ao tema da guerra fiscal torna sobremodo mais fácil diagnosticar o problema. Note-se que a referida guerra trata-se de uma competição de entes federativos, notadamente os Estados, mas frequentemente também os municípios, pela captação de empreendimentos e investimentos privados. Para tanto, ofertam o que têm: benefícios fiscais.
Aparentemente, o que ocorre é uma suposta competição saudável entre os entes da federação, uma vez que a tradicional teoria econômica nos demonstra que um mercado competitivo sempre é mais eficiente, pois possibilita melhores produtos a preços mais baixos. Não se trata mais de eleitores e votos, mas de oferta dos governantes aos seus consumidores, quais sejam, os empresários. Aquele que oferecer o melhor produto, ou seja, o melhor benefício, ganhará o cliente, no caso, os investimentos privados: fábricas, empresas, shoppings etc.
Todavia, outros campos da economia contemporânea, qual seja, a nova economia institucional, bem como a análise econômica do direito nos mostram que muitas vezes as ações dos indivíduos geram efeitos não pretendidos, que extrapolam a relação jurídica-econômica entre as partes envolvidas diretamente. São as chamadas “externalidades”, que podem tanto ser positivas quanto negativas. Externalidades positivas, grosso modo, são benefícios usufruídos por terceiros, que não pagaram por eles. Quando isso ocorre demasiadamente, tem-se uma falha de mercado e incentivo ao oportunismo, pois se qualquer um pode se apropriar de um ganho sem o respectivo custo, o mercado fica sem incentivos para ofertar aquele bem gerador das externalidades.
Por outro lado, as externalidades negativas denotam custos em que terceiros atingidos não receberam a contrapartida de respectivos benefícios. Exemplo simples é a poluição produzida por uma fábrica, que atinge terceiros que não são os seus consumidores, exemplo de falha de mercado que pode exigir (ainda que com bastante cuidado, para que não se produzam “falhas de governo”, ou seja, intervencionismo estatal cujo custo excede o benefício, constituindo um remédio pior que a doença) correção via norma jurídica, tal como o conhecido “imposto ambiental”, cuja função não é arrecadar mas sim gerar um custo maior para o poluente que adotar medidas antipoluentes. Uma correção de comportamento prejudicial via regulação jurídica, no caso, tributária.
Voltando ao tema da guerra fiscal, não é preciso muito esforço para aplicar os conceitos vistos até agora. A competição dos entes federativos, sejam estados (ICMS), sejam municípios (ISS), não é “saudável”, pois gera externalidades negativas. Quais são elas?
No caso do ICMS, constata-se que benefícios concedidos pelos estados não levam em conta custos repassados a outros estados, considerando o problema de créditos em operações interestaduais, mais especificamente em relação a Estados “importadores”. Usualmente quem paga a conta são os contribuintes que adquiriram mercadorias ou insumos daqueles Estados que concederam os benefícios, e têm a sua tomada de crédito limitada em seu estado de localidade.
No caso do ISS, a guerra fiscal se dá pelo oferecimento de alíquotas mais baixas do imposto pelos municípios. O problema se dá pela falta de critério seguro, até hoje, quanto ao critério territorial de incidência do tributo. Como a legislação tradicionalmente sempre elegeu o município do estabelecimento prestador como o da incidência do imposto, é comum que contribuintes se instalem nessas localidades, onde terão sua inscrição fiscal e ali recolherão o ISS, mesmo quando prestam serviços em outras municipalidades. Como a jurisprudência, inclusive dos tribunais superiores considera que o local da incidência é onde foi efetivamente prestado o serviço (mesmo que ali não se encontre o estabelecimento prestador), essa guerra fiscal gera prejuízos, quebras no sistema federativo, e enormes custos de transação.
Quais as consequências? Distorções no sistema tributário, problemas na arrecadação, criação de passivos fiscais etc. Novamente, externalidades negativas.
Ocorre que a guerra fiscal, bem como os próprios benefícios fiscais de forma geral não são solução alguma, mas meros sintomas de uma grave doença: o caos que se instalou, há décadas, em nosso sistema tributário. É possível curar essa doença? Sim, é. Mas isso não significa que o tratamento seja fácil.
A experiência mostra que meros convênio interestaduais, no caso do ICMS, ou imposições de alíquotas mínimas no caso do ISS, não resolveram a questão. Penso que a única forma seria por meio de uma extensa e profunda reforma tributária, a ponto de alterar a própria estrutura da tributação brasileira, principalmente quanto ao ICMS, de longe o maior problema, tornando-o um imposto de valor agregado e, preferencialmente, federal.
Todavia, resolver guerra fiscal com reforma tributária nos leva ao início do texto. Políticos são indivíduos racionais como qualquer um de nós, e, como tais, sujeitos a armadilhas da racionalidade. Uma bastante conhecida e modelada pela teoria dos jogos, campo da economia matemática que analisa comportamento estratégico, é o dilema do prisioneiro. Em breve resumo, o dilema é uma situação na qual a escolha racional, i.e., que visa maximizar o bem-estar do indivíduo leva a um resultado subótimo. Numa situação normal do mundo, as escolhas individuais maximizadoras levam a resultados eficientes, e é assim que um mercado competitivo, por exemplo, funciona. Os auto-interesses em conjunto aumentam o bem-estar social de todos, como ilustra a famosa e citadíssima passagem de Adam Smith, em “A riqueza das nações”: “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelos próprios interesses. Apelamos não à humanidade, mas ao amor-próprio, e nunca falamos de nossas necessidades, mas das vantagens que eles podem obter.”
Entretanto, no dilema do prisioneiro, dadas as recompensas (pay offs) do jogo, os incentivos levam a não cooperação entre os jogadores, que optam pela escolha que os beneficia em detrimento do outro (situação não-paretiana), sendo que um trai o outro e vice-versa. Caso cooperassem, o resultado coletivo e individual seria melhor, porém não há confiança mútua. Situação que ilustra o dilema ocorre com os chamados “ bens comuns”, cujo uso é rival (se eu consumo o bem, outro não poderá consumi-lo), porém não-excludente (não posso impedir que terceiros utilizem o bem), como por exemplo, um lago de domínio público, onde todos podem pescar sem impedimento e sem custo. Quais os incentivos que operam nesse caso? Cada sujeito irá querer pescar o máximo número de peixes, uma vez que acredita que os outros farão o mesmo. Como não há custo diretamente cobrado dele para essa pesca predatória, o incentivo é buscar o máximo resultado individual, sendo essa a estratégia dominante para os demais partícipes. O resultado é que se esgotarão os recursos naturais e mesmo que alguns tenham conseguido pescar uma boa quantidade, não há mais peixes dali por diante. O dilema só pode ser quebrado se mudarem as regras do jogo ou as recompensas do jogo, ou, mais especificamente, os custos e benefícios. No exemplo citado, direitos de propriedade, onde cada pescador fosse dono de determinada quantidade de peixes ou de determinada área pescável, faria com que os custos de sua atividade lhe fossem internalizados, sem possibilidade de jogá-los para terceiros (oportunismo).
Trazendo para o nosso tema, percebe-se claramente o dilema do prisioneiro na guerra fiscal. Ainda que o resultado para todos fosse provavelmente melhor, caso não houvesse benefícios fiscais unilaterais, os Estados têm incentivos a ofertá-los, pois não confiam que os outros não farão o mesmo e atrairão antes para si os investimentos privados. Logo, a estratégia dominante é ofertar tais incentivos, mesmo com as punições previstas e com as recorrentes ações judiciais movidas pelos Estados concorrentes.
Mesmo a solução para resolver o problema, qual seja, a reforma tributária, sofre da mesma armadilha. Por mais que os deputados e senadores saibam da necessidade de uma profunda reforma, não é de se estranhar que a mesma nunca tenha saído do papel. Ocorre que uma boa reforma implica renúncia de prerrogativas por parte dos estados-membros e toda uma sorte de custos de transação altos são incorridos nesse processo. O incentivo é não cooperar e deixar as coisas seguirem como estão.
Qual seria o melhor resultado? Uma reforma tributária que eliminasse tributos em cascata, que eliminasse tributos incidentes sobre a produção de riqueza, que evitasse tributação regressiva, e, principalmente, que simplificasse radicalmente o sistema, reduzindo os gigantescos custos de conformidade tributários brasileiros. Em um sistema assim, a guerra fiscal não teria razão de existir e tampouco seriam necessários benefícios, moratórias e anistias fiscais, que são benéficos apenas na aparência, mas que em realidade são sintomas do manicômio jurídico-tributário que vivemos.
E quanto ao dilema do prisioneiro que impede a reforma tributária, é possível superá-lo? Historicamente, sabemos que há duas situações em que é possível empreender grandes e profundas reformas: 1) quando o governante tem altos índices de popularidade; ou 2) em um momento de crise econômica tão profunda que a alternativa é reformar ou quebrar.
Obviamente, no presente momento a opção 1 não é viável, dado que a presidente Dilma enfrenta os mais baixos índices de aprovação desde que foi eleita pela primeira vez. Na década passada Luís Inácio Lula da Silva detinha popularidade suficiente para disparar o processo das reformas tributária e previdenciária, mas preferiu não o fazer. A opção 2, por outra sorte, já se encontra presente em nossa realidade e, pelos prognósticos, tende a se agravar consideravelmente, consubstanciando-se na pior depressão de nossa história. Quem sabe não podemos fazer desse limoeiro uma limonada – afinal, como diz o ditado, nas crises é que se encontram grandes oportunidades – e obter o necessário consenso de nosso legislativo de modo a finalmente reformar o nosso péssimo sistema tributário?
Quem viver, verá.
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