Até muito recentemente — há cerca de um ano, mais ou menos — a política econômica fora dominada pelo consenso anglo-saxão do pós-guerra, parcialmente modificado pela crise financeira de 2008. De modo geral, as diretrizes econômicas exibiam as seguintes características: a predominância do livre mercado sujeito à concorrência e regulações nas áreas financeiras e do meio-ambiente; políticas macroeconômicas guiadas pelo princípio do controle inflacionário e de posições fiscais sustentáveis, com margens de manobra para a estabilização cíclica; abertura ao comércio e à circulação de capitais no contexto da Organização Mundial do Comércio (OMC) e das organizações de Bretton Woods (FMI, Banco Mundial), com cooperação regulatória global seguindo as diretrizes do Comitê da Basileia; preferência por uma política industrial “horizontal”, caracterizada pelo suporte financeiro do Estado à educação, atividades de pesquisa e desenvolvimento, e investimentos em infraestrutura. Rechaçada era a política industrial “vertical”, marcada pelo intervencionismo estatal. Tal consenso vem sendo questionado, sobretudo, por um único membro do G-7, os EUA.
O consenso acima descrito foi, ao longo das últimas décadas, recomendado ou emulado por países emergentes e em desenvolvimento, embora com grandes disparidades. Em particular, esses países puderam escolher o ritmo de implantação do consenso do pós-guerra, sobretudo em relação à abertura comercial e ao livre fluxo de recursos. Que o consenso ocidental esteja sob intenso ataque por parte de um dos países que o liderou é surpreendente. Que os EUA hoje façam coro com partidos populistas de diversos matizes que estiveram perto de vencer eleições na Europa é mais surpreendente ainda. Difícil é definir com exatidão a natureza do questionamento, já que não há visão articulada ou paradigma alternativo coerente para definir o que é o Trumpismo nos EUA, o “Erdoganismo” na Turquia, o “Putinismo” na Rússia. Parte da falta de coerência está no fato de que a pluralidade de partidos populistas de hoje tem suas raízes intelectuais na direita e na esquerda. As diferenças existentes nesse espectro ideológico a respeito do papel do livre mercado e da regulação são imensas. Alguns dos que desafiam o consenso desconfiam naturalmente do livre mercado e clamam por maior regulação do Estado. Outros, como Trump, querem menos regulação.
O que muitos têm em comum é o seguinte conjunto de visões: a livre concorrência não têm a importância ditada pelo consenso — ela pode ser sacrificada em nome de outros objetivos, como a promoção de campeões nacionais, ou em prol da criação de empregos; o maior apetite por correr riscos macroeconômicos — não é que os dissidentes não percebam os benefícios da estabilidade, mas sim que ela pode ser subordinada a outros objetivos, como a sustentação de metas para o crescimento, a política industrial mais “vertical”, políticas sociais ditas inclusivas, ou seja, é como se a política macroeconômica se tornasse endógena a esses objetivos; a preferência inequívoca pela promoção das exportações em detrimento das importações, com o claro desdém pelas regras multilaterais existentes (como as representadas pela OMC), o que fundamenta a visão de que o protecionismo é não só aceitável, como desejável; por fim, a inequívoca exaltação da política industrial “vertical”, com a priorização de determinados setores em detrimento de outros, especialmente da chamada “indústria tradicional”— tal postura põe em destaque as políticas de campeões nacionais como de interesse nacional.
Se o parágrafo anterior soa familiar, se o leitor conseguiu nele identificar as políticas de Lula-Dilma, além de traços de Temer — Temer, o reformista jamais existiu, como estamos a testemunhar agora — não é mera coincidência. Aqueles que desafiam o consenso do pós-guerra são, fundamentalmente, nostálgicos e antiquados. Carecem de qualquer capacidade de perceber o mundo e a economia do século 21. Retomam velhos temas como se fossem novos argumentos em favor dos “desfavorecidos”, dos “homens e mulheres esquecidos”, dos que foram desalojados pela ascensão da China. Os bodes expiatórios estão na moda.
A França de Macron soube quebrar esse ciclo vicioso de retrocesso. O Brasil de Lula-Dilma-Temer é a própria visão do retrocesso, assim como são os EUA de Donald Trump. Portanto, deixo a reflexão: é essa heterodoxia amorfa que queremos perpetuar em 2018?
Fonte: “Zero hora”, 17/06/2017.
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