O estudante e funcionário da Universidade de São Paulo (USP) Fábio Hideki Harano, de 27 anos, preso desde o dia 23 de junho sob a acusação de portar explosivos que seriam usados numa manifestação pública contra a Copa do Mundo, não carregava explosivo algum. Ao menos foi isso que atestou o laudo finalmente produzido pelo Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate), da Polícia Militar: a substância que os policiais encontraram com ele é inerte. É verdade que ainda pesa sobre o prisioneiro um conjunto de outras acusações, como as de formação de associação criminosa e incitação ao crime, mas diante do novo laudo todas elas se enfraquecem e se desmoralizam um pouco mais.
Há autoridades policiais que pretendem contestar o que diz o Gate. Estão em seu direito. De todo modo, a ser verdadeiro o conteúdo do laudo, Fábio terá sido vítima de uma injustiça inominável. Em consequência do possível erro técnico de policiais, que disseram ser incendiário um material que, conforme está provado pela perícia, não pega fogo de jeito nenhum, ele sofreu a denúncia oferecida pelo Ministério Público, virou réu num processo judicial e ficou encarcerado por um mês e meio.
No mesmo dia 23 de junho, sob as mesmas acusações, foi preso também o professor de Inglês Rafael Marques Lusvarghi. Este, segundo atestou o Gate, não transportava gasolina, nitroglicerina nem urânio enriquecido, mas tão somente um prosaico frasco de Nescau. Nesse ponto, o pesadelo ganha traços de comédia funesta: carregar uma lancheira de jardim da infância pode levar alguém direto para o cárcere, sem escalas intermediárias.
A cada dia que passa, mais dúvidas surgem no processo contra os dois moços acusados de ser black blocs. Não há elementos que garantam que eles sejam completa e totalmente inocentes de todos os crimes de que são acusados, mas – e aqui está o ponto que causa um grande incômodo em todos os que prezam o Estado de Direito – tampouco há elementos conclusivos que garantam ser eles culpados de qualquer uma dessas acusações. Além disso, não ficou demonstrado de modo cabal que eles oferecem risco à sociedade se saírem da cela, se tiverem o direito de dormir em casa e andar pela cidade. Mais ainda: não há prova de que, soltos, sabotarão as investigações, destruirão provas e tornarão inviável o trabalho da Justiça. Sendo assim, não estão suficientemente demonstrados os motivos pelos quais eles ficaram por tantos dias atrás das grades.
Não pretendo questionar aqui a fundamentação do processo movido contra os dois, por mais que as bases desse processo se esboroem com as novas revelações oficiais. Não me compete discutir a validade das acusações – isso cabe à Justiça. Este artigo não tem a intenção de desmerecer a Justiça ou de negar a legitimidade de qualquer um de seus operadores. O que efetivamente incomoda é uma pergunta dramática e que até agora não encontrou uma resposta satisfatória: por que é que, nesse caso, não foi observado o direito de responder ao processo em liberdade?
Fábio Hideki Harano foi meu aluno no Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Destacou-se por ser presente, participante e dedicado. No dia 10 de julho, nada menos que 23 dos professores do departamento – entre os quais eu me incluo – assinaram uma carta que foi encaminhada às autoridades judiciais. Essa carta não faz nenhuma crítica à conduta das autoridades, apenas clama para que nosso aluno, que é réu primário, tenha sua prisão provisória relaxada. Só o que ela reivindica é o direito de responder ao processo em liberdade, o que, de resto, está assegurado pelo artigo 5.º, LXVI, da Constituição federal: “Ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”.
O documento subscrito pelos professores também lembra que nenhum dos crimes dos quais o réu vem sendo acusado é inafiançável ou tem pena máxima superior a quatro anos – caso em que poderia haver uma configuração favorável ao instrumento da prisão provisória (Código de Processo Penal, artigo 313, I). O confinamento poderá trazer sofrimentos irreparáveis ao nosso aluno, como se ele já estivesse cumprindo uma pena severa antes mesmo da decisão judicial definitiva.
Com esses argumentos, os professores do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP apelamos para a formação humanista e para a vocação humanitária dos juízes, e ainda esperamos que esse apelo seja atendido, sobretudo agora, quando aparecem novos indícios de possíveis inconsistências nas acusações.
A carta dos professores em favor de Fábio Hideki Harano não defende nem justifica o emprego de táticas violentas nos protestos de rua. Em nenhuma passagem admite como válido o uso de artefatos incendiários ou o apedrejamento de estabelecimentos públicos ou privados. Longe disso, o texto apenas defende que seja levada em conta a presunção de inocência, princípio inamovível de qualquer concepção que se tenha do Estado de Direito. O cidadão, mesmo quando entusiasta das manifestações contra a Copa do Mundo, não importa, tem o direito de ser considerado inocente até prova em contrário (o que também está assegurado pelo artigo 5.º da Constituição federal).
Quando negligenciamos esse direito, corremos o risco de inverter a lógica democrática e passar a acreditar que para circular em liberdade o ser humano precisa, antes, provar em juízo a sua inocência. Quanto aos que ainda não provaram diante da Justiça que são inocentes, estes deveriam permanecer confinados preventivamente… Será essa a democracia que queremos?
O empenho das autoridades em deixar claro que não cederão às táticas dos black blocs é compreensível. Esse empenho, contudo, não deveria rivalizar com o direito fundamental (que todos temos) de responder ao processo em liberdade.
Fonte: O Estado de São Paulo, 7/8/2014
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