Ao tomar posse na presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Joaquim Barbosa terá como missão consolidar a identidade da Corte Constitucional, preservando a mais respeitada imagem entre os Poderes da República e os órgãos a serviço do Estado. O elevado patamar de respeito alcançado pelo STF não é resultado apenas do julgamento da Ação Penal 470, em fase de conclusão, mas de gradativo processo de reconhecimento da sociedade por suas corajosas decisões. Nos últimos anos importantes temáticas acenderam o debate público. Basta lembrar questões como racismo e antissemitismo, progressão do regime prisional, fidelidade partidária, Lei da Ficha Limpa, proibição de nepotismo na administração pública, direitos dos índios, direito de greve dos servidores públicos, interrupção da gravidez de feto anencéfalo, uso de células-tronco embrionárias humanas e relações homoafetivas, entre outras. O chamado mensalão coroa o ciclo de percepção social sobre o Supremo, pelo fato de desfazer a cultivada impressão de que, aqui, poderosos costumam desprender-se das teias da lei e pelas implicações político-partidárias que deflagra.
As críticas feitas pelo PT à condução do julgamento que “condenou e imputou penas desproporcionais a alguns de seus filiados”, por mais que se desdobrem em atos internos de protesto ou externos de apelação a organismos internacionais (iniciativa de pouco crédito), não conseguirão empanar a aura que envolve nossa mais alta Corte. Por isso mesmo faz sentido acreditar que a semente moral plantada pelo corpo de ministros na seara política deve alterar comportamentos de representantes e governantes, cientes de que doravante deverão cuidar para não ultrapassar limites no campo de costumes e práticas. Ao presidente Barbosa compete, pois, zelar pela densa base de respeito conquistada pela Casa, para a qual, aliás, ele contribuiu com a argamassa de seu relatório sobre o mensalão. Impõe-se agora um comportamento ancorado nas regras ditadas pela liturgia do cargo e o empenho para atingir a elogiável e anunciada meta de acelerar o processo decisório para dar vazão a milhares de processos que se acumulam nos gabinetes.
Dito isto, registre-se o papel do presidente que deixou a Corte, tangido pela compulsória, Carlos Ayres Britto, que merece loas pela maneira como conduziu o julgamento da Ação Penal 470. Lhaneza, cordialidade, simplicidade, disciplina, capacidade de juntar os contrários emergem como virtudes desse magistrado sergipano, cujo pendor para a contemplação e a meditação, sob um véu de espiritualidade, funcionou como eixo de equilíbrio e luz do bom senso. Quase um milagre, por se saber que, naquele ambiente, os egos tendem a se inflamar.
Há pouco mais de três meses, ao chamar a si a responsabilidade de comandar o julgamento da mais emblemática ação penal do Supremo e o maior caso de corrupção no Brasil, Britto parecia navegar sozinho num oceano de descrença. Mas, com o processo na reta final, saiu sob aplausos, reconhecido como magistrado que honrou a toga, um ser profundamente arraigado nas raízes do humanismo, capaz de colorir a práxis do cientista jurídico com as cores exóticas da física quântica, tudo isso embalado na expressão da alma poética. Feliz, confessa: “Não perdi a viagem”. O País, que o acompanhou no caminhar do avanço, também não.
Resta ponderar sobre o teor crítico dirigido ao STF pela condenação de políticos. Parcela do descontentamento aponta como base argumentativa a “decisão de caráter político”, como se os mais altos dignitários da Justiça, que são irremovíveis de seus cargos, fossem induzidos a punir determinado partido. Ora, foram condenados atores de mais de uma sigla. Quanto ao caráter “político” da decisão, é oportuno lembrar que as Cortes Constitucionais exercem uma função política, caracterizada na interpretação e decisão sobre a separação de Poderes, sobre o federalismo e a defesa dos direitos fundamentais. Em suma, tomando posição a respeito das instituições do Estado. Se a política tem como missão servir à polis, o Estado elege como dever primacial preservar a sociedade, promovendo seu bem comum. Tal meta integra o escopo das Cortes judiciárias, não apenas dos Poderes Executivo e Legislativo. A relação das temáticas expostas no início deste texto denota o caráter político que as acolhe. Entende-se o verbo ácido contra o colegiado jurídico como manifestação (democrática, sem dúvida) de grupos acocorados nos pedestais do poder, principalmente quando as condenações atingem figuras de proa do partido que comanda o governo.
Não é de hoje que a Corte Constitucional é alvo de pressões contrárias à sua atuação. O interesse público nem sempre é o interesse de alguns públicos. Em 1893, dois anos após ser criado o STF, suas galerias, no Rio de Janeiro, eram tomadas por grupos que vaiavam e aplaudiam os votos de ministros, que concediam ou negavam habeas corpus a presos políticos. Floriano Peixoto, o presidente da República, depois de ameaçar fechar a Corte por não concordar com a soltura de um senador adversário, deixou de preencher vagas resultantes da aposentadoria de juízes. O tribunal passou meses sem trabalhar por falta de quórum. Getúlio Vargas, em 1931, reduziu por decreto o número de 15 para 11 juízes, aposentando 5 deles compulsoriamente. A ditadura de 1964 aumentou o número de magistrados para 16, mas depois voltou aos 11. Foram atos de força contra a independência do STF. Nos EUA, os 9 magistrados que formam a Suprema Corte vez ou outra decepcionam os presidentes da República (republicanos ou democratas) que os nomeiam. Lá exercem a função por toda a vida ou até quando pedem para sair. Aqui aos 70 anos se aposentam compulsoriamente. Um buraco de monta no nosso edifício judiciário.
Mesmo assim, é tempo de esperança. Pois tremula no mais alto mastro das instituições a crença de que a justiça, agora, chega para todos.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 25/11/2012
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