À medida que os tribunais vão condenando políticos por crime de corrupção, crescem as reações defensivas do Legislativo, acusando os juízes de interpretar as leis além de seu sentido literal. Mas se o Direito se exprime por palavras e elas podem ter os mais variados significados, como precisar o sentido literal de uma lei? Se a Justiça é decisiva para a estabilização das expectativas normativas, até onde vai a liberdade interpretativa dos juízes? Quando os juízes redefinem o que o Direito deve ser, isso é usurpação da função legislativa?
Essas indagações estão na história da Teoria do Direito. Entre os séculos 19 e 20, os teóricos da livre interpretação do Direito opuseram-se às correntes do positivismo jurídico, que viam a interpretação como uma operação lógica de subsunção dos fatos a normas semanticamente predeterminadas. O debate avançou quando, partindo da premissa de que a interpretação jurídica tem por objetivo não uma lei, mas o sentido que ela exprime, passou-se a afirmar que o raciocínio jurídico não podia ser visto como raciocínio dedutivo, pois a argumentação jurídica tem componentes morais e políticos intrinsecamente conectados. Prosseguiu quando novas correntes opuseram aos argumentos lógico-dedutivos argumentações de caráter retórico – em vez de estabelecer verdades evidentes, estas serviriam para mostrar o caráter razoável de uma decisão. E continuou com o advento do movimento Law & Society, herdeiro do realismo jurídico, e das teorias críticas do Direito, de inspiração marxista.
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No final do século 20, a Teoria do Direito registrou o anacronismo das discussões sobre métodos que prevaleciam nas escolas de magistratura e a opção dos doutrinadores por teses sensíveis a um diálogo interdisciplinar. Uma dizia que a lógica dedutiva não permite justificação das decisões judiciais nos casos difíceis, em que há incertezas advindas da inexistência de normas aplicáveis de forma precisa, da existência de normas contraditórias ou da dependência de soluções que causam estranheza à coletividade. Como nesses casos têm de inovar, os juízes enfrentam dificuldades para tomar decisões que atendam às expectativas dos diferentes grupos sociais.
Outra tese enfatizava que as práticas argumentativas são manifestações da ideologia dos juízes. Práticas argumentativas são discursos que revelam um conjunto de signos informativos condicionados por disputas de poder. Argumentos invocados para fundamentar sentenças configuram formas impuras de raciocínio, com implicações lógicas e normativas pautadas por valores e ideologias. Para essa tese, a persuasão propiciada pela retórica dos juízes seria um processo gerador de um efeito de realidade crível entre os que batem às portas dos tribunais. Como esse processo propicia a socialização de visões de mundo, quem aceita os argumentos dos tribunais deixa levar-se por elas. Assim, as práticas argumentativas seriam formas sutis de controle social.
O debate cresceu com a complexidade social e os novos valores sociais e coletivos, obrigando os legisladores a substituir conceitos precisos por conceitos indeterminados. O resultado foi a diminuição da subordinação dos juízes a conceitos jurídicos cujo conteúdo podia ser explicitado pelas técnicas hermenêuticas e o aumento das hipóteses nas quais eles têm de valorar conceitos indeterminados. A interpretação construtiva, que se dá quando eles aplicam esse tipo de norma a casos concretos, amplia a atuação do Judiciário, levando-a assumir o papel de validador ou instância recursal das decisões do sistema político. A partir daí, foram reforçadas as linhas de pesquisa que encaravam a ordem jurídica como um processo complexo e nunca concluído, marcado por disputas e resistências, em cujo âmbito a aplicação das leis pressupõe narrativas formadas ao longo do tempo. Essas narrativas consistem em padrões de legitimação e em tradições jurídicas capazes de justificar relações políticas e sociais.
A ordem legal deixa, assim, de ser vista como um sistema de normas ordenado por critérios lógicos e passa a ser compreendida por suas vinculações a contextos políticos e culturais. Os valores emergentes desses contextos são incorporados às instituições e seu sentido resulta de contínuos processos de interpretação alimentados por narrativas, símbolos e rituais.
A vida do Direito não é um diálogo norteado pela ideia da resposta certa. Juízes não trabalham com fórmulas matemáticas nem com a demonstração do verdadeiro, mas com a busca da melhor solução possível em dadas circunstâncias. A vida do Direito consiste em argumentar – mesmo assim, ver o Direito como argumentação pressupõe limites, pois nem toda decisão judicial pode ser juridicamente justificada. Isso ocorre nos casos em que não há respostas plausíveis por meio do Direito. É aí que se podem distinguir o juiz que recorre à interpretação extensiva, com objetivos políticos, e o que sabe equilibrar discricionariedade com os valores da comunidade e avaliar o impacto de suas decisões para a economia e a política. Não se pode restringir a discricionariedade deste último, a pretexto de impedir abusos do primeiro. Igualmente, aceitar a discricionariedade judicial como necessária à interpretação não significa aceitar que não existam restrições aos juízes acerca do Direito.
Vista à luz dessa discussão, a alegação dos políticos de que os juízes têm de se prender ao texto da lei peca pelo desconhecimento da hermenêutica. Mas a tentativa dos políticos de tipificar o crime de interpretação para coibir abuso de autoridade, obrigando os juízes a se aterem à literalidade das normas, não é só prova de ignorância. Também é uma afronta ao Estado de Direito. O princípio da separação dos Poderes não autoriza o Legislativo a predefinir a aplicação da lei pelos tribunais nem a punir magistrados em decorrência de suas interpretações. Isso só ocorre nas ditaduras.
Fonte: “Estadão”, 15/12/2017
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