Diversos julgamentos, em variados formatos, ocorrem nas 38 peças de Shakespeare, com destaque para os que definem o apogeu de duas das chamadas “comédias sombrias”, Mercador de Veneza e Medida por Medida. Mas o assunto central do mensalão não é propriamente o julgamento (e seus embargos, aliás, inexistentes em Shakespeare): o mensalão tem a ver com a corrupção e seus usos no jogo do poder.
Em todo o cânone, a palavra “corrupção” aparece, com todas as suas variações, 76 vezes, a grande maioria das quais com o sentido de “estragar” ou “desgastar”, e raras vezes como hoje a conhecemos, vale dizer, como evento de natureza mercantil, a retribuição pecuniária pela concessão de vantagens indevidas. “Subornar” – e suas variações – atinge apenas 13 aparições: é pouco, comparativamente a “matar” (343 ocorrências) e “assassinar” (254), “enforcar” (257) e “envenenar” (136), entre tantas variações em torno da morte violenta.
É curioso que os casos mais explícitos de corrupção estejam nas peças situadas na antiguidade, como o inequívoco suborno de algumas anônimas sentinelas gregas em Troilo e Créssida, sugerindo tratar-se de crime baixo, típico da soldadesca. Na verdade, é nesse contexto a mais célebre aparição do tema: às vésperas da decisiva batalha em Filipos, Brutus acusa Cássio de ter uma “mão coçando” e arremata que não foi para isso que mataram Julio César. Cássio se ofende, os homens discutem, mas Brutus relativiza seu julgamento ao reclamar que Cássio negou dinheiro para seus exércitos, e os amigos se ajustam face à urgência da batalha que se aproxima e à causa que os une. Homens honrados, como os descreveu Marco Antônio.
Ângelo, o delegado corrupto em “Medida por Medida”, muito lembrado recentemente, merece um comentário específico, eis que enseja uma pergunta retórica muito importante para quem busca a dimensão moral dos mensaleiros: será verdade, em Shakespeare ou de forma mais geral, que não se pode governar sem violar a lei?
Um pouco de contexto. “Medida por Medida” foi encenada pela primeira vez em 26 de dezembro de 1604 diante do recém-empossado rei Jaime I, e deve ser vista como uma sátira aos puritanos ingleses ao problematizar temas como o casamento, a repressão à sexualidade e ao que ocorria fora das muralhas da cidade de Londres, nas chamadas liberties. Era apenas ali que podiam se estabelecer bordéis, assim como teatros e hospícios; era o espaço off shore onde se deixava ocorrer o que não se podia nem devia proibir, e que era essencial para a pulsão vital da sociedade. Não obstante, o teatro, o casamento e a prostituição eram atividades, para usar a linguagem de hoje, altamente reguladas. Os “detestáveis pecados do incesto, adultério e fornicação” apenas se tornaram matéria de legislação expressa, e nesses termos, em 1650, com os puritanos no poder, e junto com o fechamento de todos os teatros. Incesto e adultério passaram a ser puníveis com a forca, e a fornicação com 3 meses de prisão, enquanto os administradores de bordéis e cafetões seriam chicoteados e encarcerados por 3 anos e condenados à morte na reincidência. Essas providências vieram meio século após Shakespeare, mas as tensões sobre os limites da lei já estavam lá em toda sua complexidade.
A trama de “Medida por Medida” começa quando um bom governante, uma discreta homenagem ao novo rei, se afasta do poder, simulando uma viagem, para melhor observar se o país está bem servido em matéria de justiça comum, sobretudo em conexão com os acontecimentos que se passavam nas liberties. Curiosamente, o Duque escolhe para substituí-lo um indivíduo conhecido pelo moralismo exacerbado, o rigoroso Ângelo, uma extraordinária alegoria para os puritanos, que logo se revela uma fraude.
É claro que o Duque quer nos pregar uma lição ao alocar um vigarista para executar leis excessivas e deslocadas que ele mesmo designou como “regras de barbearia”. Os elogios feitos à retidão de Ângelo soam exatamente como os de Antônio a Brutus, em sua oração fúnebre a César. Ângelo enreda-se numa teia de corrupção e, ao final, no julgamento que encerra a peça, escapa de ser enforcado unicamente porque as comédias terminavam com casamentos, não com execuções.
A lição de “Medida por Medida” certamente não é sobre a inevitabilidade do desrespeito à lei, mas sobre os limites dessa, sobretudo nos assuntos pertinentes às atividades tendo lugar nas liberties, o teatro entre elas. A peça ensina sobre as matérias que a lei, o cálculo, o mercado e o dinheiro não podem alcançar, jamais sobre a funcionalidade do crime.
Em síntese, nem a corrupção mercantilizada e dolarizada de nosso tempo era o assunto dominante na esfera da política em Shakespeare, nem tampouco o julgamento do mensalão se restringe meramente a uma coleção, ainda que orquestrada, de episódios de suborno; pois como bem definiu o ministro Celso Mello, tratava-se de “um projeto criminoso de poder”.
Eis a verdadeira questão! A corrupção dos mensaleiros, sobretudo a dos que estavam no polo ativo, não visava ao enriquecimento pessoal, mas servia como instrumento ilegítimo para alcançar e manter-se no poder. Na linguagem do tempo, isso quer dizer usurpação, a matéria chave de boa parte da dramaturgia shakespeariana. Era isso que havia de “podre” no reino da Dinamarca. Na verdade, se a usurpação é a face política da corrupção, segue-se que não há outro tema mais importante nas tragédias de Shakespeare.
Essa era uma época em que o poder era não apenas pessoal como associado a uma linhagem familiar, de modo que os incidentes ligados a casamentos, descendentes e parentescos, em vez de eleições, forneciam o impulso primário para a mudança política. Nesse contexto, a obtenção e manutenção do poder “por meios ilegítimos” ocorria em circunstâncias excepcionais, dificilmente deixando de envolver o assassinato, às vezes, diversos deles. O cânone está repleto de esfaqueamentos, esquartejamentos e estrangulamentos, muitas vezes com os piores esmeros de crueldade. Em nossos dias, apenas a forma é diversa: as malas de dólares e as figuras cítricas substituem os punhais sorrateiros e os venenos derramados nos ouvidos de monarcas adormecidos.
A política de nossos dias pode ter adquirido certa dignidade, mas há algo que nos torna muito piores, conforme explica o escritor Alexander Soljenitsyn: “Se a imaginação e a força interior dos celerados de Shakespeare se limitavam a uma dezena de cadáveres, era porque eles não tinham ideologia. A ideologia! Ela fornece a desejada justificação para a maldade, para a firmeza necessária e constante do malfeitor. Ela constitui a teoria social que o ajuda, perante si mesmo e perante os outros, a desculpar seus atos e a não escutar censuras nem maldições, mas sim elogios e testemunhos de respeito”.
Sim, a ideologia é o que nos leva ao genocídio, à limpeza étnica, ao Holocausto e ao terrorismo de Estado de regimes totalitários de esquerda ou de direita. Essas depravações contemporâneas implicam derramamento de sangue em escala infinitamente superior às presentes no cânone, a despeito de serem tomadas, às vezes, com mais naturalidade que as atrocidades de um Ricardo III.
“Graças à ideologia, o século 20 teve que suportar as malfeitorias de milhões”, diz Soljenitsyn, que, ao relatar que milhares de inimigos do regime soviético foram mortos exclusivamente para servir de alimento aos animais do zoológico, explica o aparente paradoxo envolvido na banalização dos massacres de nosso tempo: “Eis a raia que não se atreve a transpor o malfeitor shakespeariano, mas o malfeitor com ideologia ultrapassa-a e seus olhos continuam claros”.
A perversidade cometida em nome do partido não agasta o meliante, dá-lhe uma espécie de anestesia espiritual decorrente do pertencimento a um projeto moralmente superior ou a uma burocracia, exército ou milícia que o executa. Conforme observa Hanna Arendt, “Eichmann não era nenhum Iago, nenhum Macbeth, e nada estaria mais distante de sua mente do que a determinação de Ricardo de “se provar um vilão”. A não ser por sua extraordinária aplicação em obter progressos pessoais, ele não tinha nenhuma motivação”. Ademais, prossegue, “a essência do governo totalitário, e talvez a natureza de toda burocracia, seja transformar homens em funcionários e meras engrenagens, assim os desumanizando”. A tese da defesa era a de que não havia culpados, a vilania era coletiva e relativizada, seus perpetradores senão pequenas engrenagens de desígnios maiores, impessoais e sempre fora do alcance da corte. Tese derrotada em Nuremberg, em Jerusalém e também em nosso Supremo Tribunal.
A banalidade com que os mensaleiros agrediram a democracia possui diversas instâncias. Foram eles a inventar a “espetacularização da suspeita”, os ridículos dossiês transformados em reportagens, ou mesmo em livros-denúncia (um novo filão), as ações populares como arma política, o aparelhamento do Ministério Público, do Judiciário, as CPIs de tintura macarthista, com o intuito de “passar o país a limpo”, de que se queixam amargamente agora que foram desmascarados e ocupam com todo merecimento a posição de réus.
A diferença entre vilões shakespearianos e os mentores do mensalão é a que apontou Soljenitsyn acima: a ideologia remove o remorso, com ele a complexidade psicológica do malfeitor, e o enredo fica menor. Não é o que se passa com Macbeth, que “matou o sono”, pois não dorme mais e afirma que “tudo quanto vale nesta vida na velhice, honra, amigos, eu já não posso ter”. Sua culpa o faz humano, e por conta disso, muito melhor que todos os mensaleiros juntos que, já condenados, não demonstram um centímetro de mal-estar com os crimes que perpetraram.
A direção partidária fala no “erro em praticar os mesmos atos dos outros partidos”. A tese aqui repete o equívoco quanto à lição oferecida por Ângelo: a impossibilidade da integridade na democracia burguesa, ou a impossibilidade do ser honesto e governar. Seguramente, essa tese não pertence a Shakespeare.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 18/08/2013
Melhor texto sobreo assunto que já tive oportunidade de ler!! parabéns pela clareza e leveza !