Às vésperas da posse do novo governo, o tema reforma tributária volta à agenda. Mais do que nunca, ela é premente, uma vez que aos deletérios efeitos do manicômio tributário brasileiro sobre a competitividade são acrescidos, agora, os da guerra cambial, gravosa especialmente para os produtos de maior valor agregado, que vêm perdendo representatividade na pauta de exportações e induzindo perigoso processo de desindustrialização.
O sistema tributário brasileiro, complexo e ineficiente, tem sua qualidade persistentemente deteriorada pela voracidade do Fisco, despreocupado com princípios de eficiência. O cipoal de normas que tornam a gestão fiscal onerosa e insegura, a tributação dos investimentos e das exportações e a guerra fiscal são exemplos de distorções que comprometem a competitividade da economia. Mas o debate sobre a reforma tributária se vem assentando em falsas premissas que, repetidas à exaustão, se tornam dogmas que distorcem o diagnóstico do problema. Alguns deles são aqui considerados:
“A elevada carga tributária compromete a competitividade do setor produtivo nacional.” Não é, obviamente, a magnitude da carga que ofende a competitividade, mas sim a qualidade dos impostos que a compõem. Um modelo tributário neutro, infenso a cumulatividades, onera isonomicamente a produção nacional e a importada e permite a desoneração plena das exportações. Não altera, pois, os preços relativos.
“A reforma tributária deve reduzir a insuportável carga tributária.” Reformar o sistema tributário não implica reduzir a carga, cuja magnitude é definida pela calibragem das alíquotas, estabelecidas em lei ordinária. A reforma nem reduz a carga tributária nem é necessária para sua redução. Na verdade, a carga é variável e dependente: sem corte nos gastos públicos, é ingenuidade clamar por redução de tributos. A propósito, o governo eleito já considera a hipótese de recriação da CPMF.
“A eliminação de algumas distorções do ICMS, como a tributação dos bens de capital e os de uso e consumo, abalaria as finanças estaduais.” Os Estados poderiam suprir sua necessidade de caixa por meio de alíquotas transparentes e neutras, mas preferem fazê-lo de forma dissimulada, bitributando insumos e bens de capital. A quebra da cadeia de débito-crédito do ICMS, com a não devolução do imposto pago nas etapas anteriores da cadeia produtiva – como ocorre com os bens de uso e consumo – implica desrespeito ao princípio da não cumulatividade, bitributação e arrecadação espúria. O fato é que os governantes não querem enfrentar o custo político de praticar alíquotas transparentes. Enquanto a alíquota nominal do ICMS é de 18%, a carga efetiva talvez seja de 20% “por dentro” ou de 25%, se cobrada de forma transparente, “por fora”.
“O princípio de destino resolverá o problema do crédito acumulado do ICMS, pois os Estados não mais terão de devolver imposto arrecadado por outra unidade federada.” A lógica do ICMS, vigente desde a instituição do ICM, em 1967, impõe ao Estado destinatário da mercadoria, por obediência ao princípio da não cumulatividade, o ônus da devolução do imposto recebido pelo Estado remetente, mesmo quando ela venha a ser consumida (transformada ou não) em seu território. Arrecada, portanto, apenas o imposto incidente sobre o valor agregado em seu território, mais o correspondente à diferença de alíquota, se houver. Quando a saída subsequente à compra interestadual não é tributada, como no caso das exportações, a diferença de alíquota é negativa. O ônus do crédito de ICMS arrecadado por outro Estado decorre, por óbvio, de insuficiência de produção própria para suprir seu consumo e exportação, e não porque estas são imunes. De outro lado, o princípio de destino nas operações interestaduais com a cobrança na origem, como querem os Estados, agravará o processo de acumulação de crédito nas saídas não tributadas – entre elas as exportações -, pois as compras interestaduais passarão a ser tributadas pela alíquota interna.
“A diversidade de alíquotas é um dos fatores responsáveis pela complexidade do sistema.” Essa cantilena sobre diversidade de alíquotas – do ICMS ou de qualquer outro tributo – vem, talvez, da longínqua época em que o cálculo do imposto devido exigia morosas operações aritméticas. Não parece crível que o fato de a rapadura e o piano sofrerem diferentes incidências de ICMS torne o sistema tributário mais complexo. Até porque existe razoável estabilidade temporal nas alíquotas praticadas. A profusão de normas editadas cotidianamente (só o Estado de São Paulo editou, em média, 33,5 atos por mês nos últimos quatro anos) por certo é muito mais onerosa à gestão tributária do que o fato de as alíquotas do piano e da rapadura serem diferentes.
Vários outros dogmas são aceitos sem reflexão. Na verdade, os problemas do ICMS decorrem do evidente conflito entre responsabilidade e competência tributária dos Estados. Enquanto a União é responsável pela competitividade da economia e pelo equilíbrio das contas externas, a gestão do ICMS, pelos Estados, tem sempre viés arrecadatório, ainda que à custa de graves ofensas à neutralidade do imposto.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 29/11/2010
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