No Brasil existe uma longa tradição estatista, associada à desconfiança em relação ao capital privado e estrangeiro e à ideia de que o Estado pode resolver boa parte das mazelas sociais do País. Mais recentemente, ignorando a enorme escassez de recursos públicos que vigora há muitos anos no País, esse perfil foi fortalecido pela ascensão de governos com viés estatista ainda mais forte por aqui e em outros países da América Latina e pela associação espúria entre a crise econômica recente e a necessidadede maior intervenção do Estado na economia.
É nesse contexto que se vem tentando implementar o “modelo” de crescimento dos gastos públicos correntes consagrado no texto constitucional de 1988, com vistas ao “resgate da dívida social”, em que, de tempos em tempos, pressões puramente corporativas pegam carona indevida.
Além disso: 1) tem havido claro recuo das políticas liberalizantes implementadas junto ao Plano Real; 2) tenta-se reforçar o papel do Estado na expansão de setores básicos, como energia elétrica, petróleo e mesmo telecomunicações (cuja privatização foi reconhecidamente um caso de sucesso); e 3) procura-se recolocar em prática a ideia de que o Estado deve ser o grande operador no financiamento das atividades de investimento no País, notadamente das empresas estatais, mediante a colocação de títulos públicos e emprestando com juros subsidiados.
Ao contrário da China, que, segundo consta, poupa 50% do seu PIB – e onde a linha que separa público e privado é pouco nítida -, lideranças políticas querem que o setor público brasileiro, poupando muito pouco e com baixo graude eficiência, dê conta, simultaneamente, de muitas tarefas. Seriam: diminuir a pobreza; promover a redistribuição de renda; fornecer serviços básicos de saúde e educação com subsídios ou gratuitamente; pagar o funcionalismo acima do setor privado; investir pesadamente em infraestrutura, energia, petróleo, telecomunicações, etc.; ser o principal financiador dos investimentos no País; interferir nos mercados cambiais depreciando a moedanacional (como faz a China); sem falar no malsucedido 3.º Plano Nacional de Direitos Humanos.
O ponto central é que, para o governo fazer tanta coisa, precisa poupar muito. E essa não é nossa tradição. Último dado do IBGE para a poupança global interna: 14,2% do PIB, no início deste ano. Minha estimativa para a poupança média das administrações públicas (União, Estados e municípios, sem empresas) em 1995-2009: -0,1% do PIB (ou seja, um déficit corrente). Não é preciso recorrer a diferenças ideológicas – trata-se de mera falta de dinheiro. É preciso diminuir, e não aumentar, os gastos correntes.
Se os gastos são ineficientes, é sempre possível fazer mais com os mesmos recursos. E nada é de graça. Mesmo se fossem eficientes e cobertos por impostos adicionais, os aumentos de gastos correntes no Brasil encerrariam outros problemas: primeiro, redução de produção por causa dos próprios impostos; e, segundo, de poupança privada, não só pela queda de produção, como porque, via transferências orçamentárias, são redirecionados recursos de quem poupa mais para quem poupa menos. Resultado: queda de investimentos privados.
Sem cobertura de impostos adicionais, reduz-se a disponibilidade de recursos para investimentos públicos. Para realizá-los, só aumentando o endividamento público, à custa de subir as taxas de juros e inibir o setor privado. No final, queda dos investimentos e da taxa de crescimento potencial da economia.
Nas fases de bonança internacional, como a que vivemos entre 2003 e 2008, o aporte maciço de poupança externa resolve parte das deficiências, mas à custa de inundar de dólares o País (que, sem poupança suficiente, tem de se endividar internamente para comprá-los, e, mesmo assim, não impede a apreciação cambial com efeitos desfavoráveis sobre certos segmentos). E como nem tudo pode ser importado (especialmente serviçosde infraestrutura), o congestionamento de gastos correntes públicos com o investimento privado acaba pressionando a inflação além da conta, levando, finalmente, à subida dos juros e à interrupção da retomada.
E o velho risco de insolvência pública? A crise de 2008 nos pegou com margem inédita para piorar os resultados fiscais, porque vínhamos gerando saldos acima do necessário para estabilizar a razão dívida líquida-PIB. Só que essa margem já se esgotou. E, além disso, criamos um compromisso adicionalde R$ 66 bilhões que não existia antes da crise e não consta das estatísticas da dívida pública líquida de ativos financeiros. Trata-se do valor presente dos subsídios de crédito dos novos empréstimos do BNDES, conforme cálculos do próprio banco.
É curioso que, nessas condições, não haja maiores preocupações com o risco fiscal. Talvez porque haja países na Europa em situação bem pior, por não terem acumulado a citada margem para piorar. Só que lá a ameaça à unificação monetária cria um mantode proteção para os países mais fracos, enquanto por aqui a saída tem de vir mesmo é do nosso bolso.
Fonte: Jornal “O Estado de S.Paulo” – 12/07/10
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