Os ingleses respeitam tanto a Constituição que preferiram não redigi-la. Nós, brasileiros, gostamos tanto de legislação que decidimos criar uma das Constituições mais longas do mundo. A nossa só é menor que as cartas magnas da Índia e da Nigéria, segundo o The Comparative Constitutions Project.
A nossa tara por legislação não significa, porém, respeito pelas leis. Significa um mero fetiche, a ilusão de que a norma legal é o instrumento capaz de resolver plenamente todo e qualquer problema. Uma tolice.
Em contrapartida, criamos, vocês devem se lembrar, essa coisa bizarra chamada de “leis que não pegam”. Pudera: com tantas leis é impossível conhecê-las e respeitá-las. Qual é o estado da nação? De 1998 a 2014, foram criados quase 5 milhões de normas destinadas a reger a nossa vida, segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação. Hoje, esse número deve superar os 6 milhões.
O legislador, dando vazão ao fetiche, ainda achou por bem criar a norma segundo a qual a nenhum brasileiro é permitido alegar desconhecimento da lei como atenuante ou excludente em caso de violação (artigo 3.º do Decreto-Lei 2.848, de 1940). Se hoje essa regra é uma arma legal contra cada um de nós, nasceu, curiosamente, de um entendimento sensato durante o Império Romano de que, intuitivamente, as pessoas saberiam reconhecer o bem e o mal e assim evitariam certas condutas. Quem não o fizesse seria, claro, punido.
O fato é que a soma da quantidade absurda de leis (muitas delas absurdas), do nosso fetiche por normas escritas e o hábito de descumprir regras não é, triste constatação, uma novidade. O elemento novo é o Supremo Tribunal Federal relativizar a Constituição em vez de respeitá-la.
É incompreensível e, a meu ver, inconstitucional a decisão de impedir o senador Renan Calheiros de assumir a Presidência do país em caso de impedimento ou vacância do cargo por ser ele réu numa ação penal por peculato no próprio STF. Se Renan não tem condições de cumprir a regra sucessória, não deveria nem sequer presidir o Senado. Se o STF entendeu que o senador deve permanecer na função, pela Constituição, deve assumir todas as atribuições e responsabilidades inerentes ao cargo.
O artigo 80 da Constituição define que o presidente do Senado é o segundo na linha de sucessão depois do presidente da Câmara dos Deputados e antes do presidente do STF. Pela carta magna, Renan, por ser presidente do Senado, tem respaldo constitucional para assumir a Presidência caso Michel Temer ou Rodrigo Maia não possam fazê-lo. Repito: se Renan não pode figurar na linha sucessória, não poderá, por extensão, exercer parte da responsabilidade que lhe cabe como presidente do Senado. O STF deveria, portanto, tê-lo afastado da presidência. Ao não fazê-lo, criou um problema jurídico para tentar evitar um problema político. Não se enganem: as consequências negativas da decisão ainda vão aparecer.
Desgraçadamente, a decisão do STF institucionaliza o Método Lewandowski de Relativização Constitucional: se Dilma Rousseff pôde ser afastada da Presidência sem perder os direitos políticos, por que Renan não poderia continuar como presidente do Senado e ser excluído da sucessão presidencial?
Ambas as decisões podem, claro, virar jurisprudência. E, se houver uma terceira do tipo, os ministros do Supremo poderão pedir música no “Fantástico”.
Fonte: “Gazeta do povo”, 12 de dezembro de 2016.
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