“Novo normal” é uma expressão cunhada por Mohamed El-Erian para caracterizar o fato de que esta crise não é como as que vivemos nas últimas décadas, com repercussões basicamente cíclicas, mas uma crise que provocará uma ruptura estrutural: quando ela passar e as coisas voltarem ao normal, esse não vai ser o mesmo normal de antes. Não reconhecer isso é arriscar a surpresa de se planejar para a volta do normal anterior e se descobrir numa realidade bem diferente.
A última crise econômica que provocou uma mudança semelhante foi a Grande Depressão. À semelhança do que ocorre hoje, a saída para aquela crise também passou por uma política econômica anticíclica e, de forma geral, por mais intervenção estatal na economia. O maior ativismo estatal não ficaria restrito, porém, ao período da crise, mas se estenderia pelas décadas seguintes, com uma regulação cada vez mais estreita da atividade empresarial, refletindo a desconfiança com que a sociedade passou a encarar o livre mercado, tendência que prevaleceu até a revolução liberal liderada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan. Ainda que o sofrimento agora seja muito menor, a mesma desconfiança está de volta.
O mundo pós-crise, se ele pode ser assim classificado, tem sido de tamanha volatilidade, que fica difícil pensar além do próximo foco de estresse. Mas alguns analistas têm especulado sobre como será esse novo normal. Alguns pontos em comum podem ser extraídos dessas análises.
O setor privado continuará no processo de desalavancagem iniciado no último par de anos, com foco nos países onde o endividamento mais cresceu nas duas décadas passadas: EUA, Espanha, Portugal, Reino Unido etc. Isso se traduzirá num aumento da poupança, com impacto deflacionário, notadamente pela dificuldade de compensar a queda do consumo pela expansão das exportações. As tensões comerciais devem crescer, especialmente se falharem os mecanismos de coordenação global criados durante a crise.
A crise europeia vai levar os governos a anteciparem o fim de algumas medidas de estímulo, mas isso não será feito tão rápido quanto justificaria a sua situação fiscal, pois se terá de compensar a fraqueza da demanda privada, o que manterá o déficit público em níveis relativamente altos, ainda que cadentes. Isso acarretará a alta da razão dívida pública/PIB na maioria dos países ricos. Nos países em que esta já é elevada, como Japão, Itália e Grécia, o quadro fiscal ficará ainda mais complicado. O receio de calote nessa dívida será uma fonte recorrente de volatilidade, a qual também se alimentará da exposição dos bancos ao risco soberano, uma vez que estes, voluntária ou compulsoriamente, absorverão boa parte da nova dívida. Além disso, os cortes de gastos e as reformas para elevar a competitividade de países com grandes déficits externos podem gerar instabilidade política e contribuir para o aumento da incerteza.
A regulação e a tributação do setor financeiro devem aumentar, não necessariamente de forma racional e coordenada, por vezes reagindo mais às motivações políticas do que à análise dos tecnocratas. As propostas de autorregulação e liberalização financeira estão enterradas. Parece claro que os bancos terão de operar de forma menos alavancada e manter maiores reservas de liquidez. As grandes instituições devem ser mais intensamente supervisionadas e pagar mais impostos. Uma maior proporção dos negócios com derivativos deve passar a ser feito em bolsas, e não diretamente com os bancos.
Bancos, empresas, governos e famílias manterão elevada sua demanda por liquidez, em claro contraste com a situação pré-crise. Isso dificultará o alongamento dos prazos das dívidas de agentes mais alavancados, especialmente governos e bancos, tornando-os mais vulneráveis a crises de liquidez, mesmo para aqueles cuja solvência não esteja em questão.
Mais intervenção estatal, mais tributação, menos intermediação financeira e maior volatilidade devem frear o investimento e o aumento da produtividade, reduzindo o potencial de crescimento mundial. Seja pela falta de demanda, seja pela expansão mais lenta da capacidade de produção, o mundo vai crescer mais devagar. O desemprego vai cair dos picos recentes, mas lentamente, gerando uma perda de capital humano que também reduzirá o potencial de crescimento. Nesse ambiente, os bancos centrais tenderão a manter os juros em patamar relativamente baixo e demorarão a reverter as medidas de afrouxamento quantitativo. O risco de alta na inflação, e mesmo de estagflação, vai ser um tema recorrente.
Os países emergentes se dividirão em dois grupos. Um, que inclui partes da África, América Latina e Ásia, deve crescer menos que no pré-crise. Outro, liderado pela China, e no qual o Brasil se insere, será a nova fonte de dinamismo global. Se forem capazes de manter a disciplina que os levou a essa situação, devem ver sua influência nos fóruns multilaterais de discussão global crescer.
Fonte: Jornal “Valor Econômico” – 04/06/2010
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