Dia 28 de julho a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro aprovou o PLC 174, apelidado como “lei do puxadinho”. Em resumo, a lei permite, em caráter temporário, a regularização de algumas construções que estão irregulares em determinados parâmetros. Ela autoriza, por exemplo, o uso misto em edifícios residenciais e também de aumento de gabarito, a altura máxima das edificações, em alguns casos, sempre sob contrapartida financeira. A motivação do projeto teria cunho fiscal, de equilibrar os cofres públicos em um período emergencial de pandemia.
Entidades como o CAU-RJ, CREA-RJ, o IAB-RJ, o Ministério Público do Rio de Janeiro e o BR Cidades se manifestaram de forma crítica perante a lei, assim como a grande maioria da classe urbanística. As críticas ao PLC são várias, principalmente em relação ao processo como foi apresentado. Em meio à pandemia, o projeto de lei foi aprovado às pressas, sem discussão pública ou comunitária a respeito das mudanças propostas. Estudos técnicos não foram apresentados para justificar as medidas e, ainda, há potenciais irregularidades legislativas da própria lei. O objetivo teve cunho fiscal e o texto sugere o uso da arrecadação mediante o aumento do potencial construtivo para despesas correntes, o que iria contra o Estatuto das Cidades, além de apresentar mudanças que contrariam o próprio Plano Diretor da cidade. Neste cenário, as entidades não poderiam estar mais corretas.
O PLC 174, no entanto, traz à tona uma questão importantíssima que não deve ser ignorada: não sendo este projeto de lei para regulamentar as irregularidades construídas no Rio de Janeiro, qual será o processo ou a lei que terá esse objetivo? Esse ponto, de extrema urgência, parece ser ignorado pelo atual Plano Diretor, pelo debate público sobre urbanismo na cidade e, ao descartar este projeto de lei, colocado ainda mais distante de ser resolvido.
Segundo o Ministério de Desenvolvimento Regional, cerca de metade dos imóveis do país estão irregulares. Uma pesquisa realizada em 2015 pelo CAU em parceria com o Datafolha revelou que cerca de 85% das reformas de construções foram realizadas sem o acompanhamento técnico de um arquiteto ou de um engenheiro. Neste cenário, matéria de 2019 da Folha informa que “a Prefeitura do Rio de Janeiro não tem um levantamento sobre quantos imóveis estão irregulares. Também não informou quantos fiscais tem à disposição para monitorar o crescimento urbano da área.” A presença de imóveis irregulares em cidades brasileiras, e talvez principalmente no Rio de Janeiro, é assustadora, sendo ironicamente quase a regra do ambiente construído.
Há uma parte significativa desse universo que, recentemente, o urbanismo tem lidado cada vez melhor, que é a regularização de favelas. No passado, a política urbana focava na demolição de assentamentos irregulares ao invés de aceitá-las e regularizá-las — tudo dentro da lei. A própria Prefeitura do Rio de Janeiro, em artigo de 2015, resgata a história das remoções de favelas na cidade, onde algumas centenas de milhares de pessoas foram desalojadas ao longo de quase um século de políticas urbanas e habitacionais fracassadas.
Depois de muitas lutas de defensores ao direito à moradia e do entendimento de que tais políticas apenas agravaram o acesso a moradia e pioraram as condições sociais dos moradores, tal estratégia foi gradualmente substituída pela regularização, embora muitos ainda corram risco de despejo. A estratégia de regularização aceita que a favela não voltará a ser, por exemplo, uma área de preservação ambiental cujo território está caracterizado perante a lei, nem atenderá padrões construtivos exigidos pelo mercado formal, tampouco se tornará formal do dia para noite. Na prática, seguirão sendo bairros que já fazem parte da cidade há décadas.
Imóveis formais irregulares não têm uma história muito diferente: são centenas de milhares de irregularidades que não se conformam com as leis atuais e, por mais que gostaríamos, a maioria deles nunca estará em conformidade. No entanto, a gestão urbana deve buscar, de alguma forma, a formalização total com equilíbrio entre a adaptação de fato destes imóveis e a aceitação de que nem todas adaptações são necessárias ou mesmo benéficas para a cidade.
Estudo de 2008 pelo Ciro Biderman indica que o “zoneamento e normas de parcelamento parecem ter um grande impacto na formação de moradia informal. Estas são típicas normas usadas pela elite para segregar os pobres de morar na cidade ou para terem acesso às utilidades públicas pagas com impostos municipais ou estaduais.” O estudo relata que o aumento das exigências para a regularização a partir de 1979, “apesar de ter boas intenções, i.e. de proteger compradores no mercado habitacional e garantir padrões urbanos, resultou em criar muito mais dificuldades para os pobres regularizarem suas propriedades. Aliás, a lei acabou prejudicando um dos grupos que pretendia proteger”.
Conclusão semelhante é indicada em estudo de 2013 de Cavalcanti e Da Mata, que sugerem que uma regulação do uso do solo “mais amigável” ajudaria a mitigar a informalidade e o surgimento de favelas. Ambas conclusões estão alinhadas à perspectiva histórica de que a remoção de favelas apenas agravou a informalidade: não é possível, através de ações simplistas como usar uma retroescavadeira ou uma canetada, acabar com a pobreza e com a desigualdade de renda, e a ausência da alternativa irregular acarreta em problemas ainda mais graves. O empilhamento de inúmeras regulações do ambiente construído, cujos objetivos originais às vezes são até mesmo esquecidos, da exigência de vagas de garagem a áreas de recreação, acaba elevando a barreira à formalidade e, nos imóveis formais, dificultando a utilização das edificações da melhor forma ao longo do tempo, impedindo transformações e levando a irregularidades para que isso aconteça.
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A nota do CAU-RJ alerta que a lei teria “potencial para alterar a paisagem urbana e gerar prejuízos ambientais e urbanísticos irreversíveis”, e uma das conselheiras trouxe o argumento de que tais mudanças em edificações vizinhas poderiam trazer incomodidades e desvalorizar os imóveis da região. Este lado da crítica, no entanto, se assemelha aos frequentes argumentos contrários a mudanças de zoneamento e adensamento de bairros de elite, seja no bairro Higienópolis ou nos Jardins, em São Paulo, onde essa retórica é frequentemente utilizada para barrar estações de metrô ou permitir o adensamento da área. Em cidades norte-americanas, a justificativa de mudança do “caráter do bairro”, impedindo sua transformação, historicamente é utilizada como ferramenta de exclusão racial.
Pelo contrário, as condições sendo regulamentadas pelo PL174, analisadas isoladamente, poderiam trazer benefícios para a cidade. As mudanças focam em usos mais permissíveis das edificações, regularizando usos mistos e trocas de uso, assim como as “fachadas ativas”, a ocupação comercial no térreo de edifícios residenciais. Também regulariza imóveis ligeiramente mais altos ou com área construída um pouco maior, basicamente ratificando o aumento da oferta de área construída formal em uma cidade onde a escassez de área construída é imensa e que possui uma imensa barreira à ampliação da oferta de moradia formal. As medidas se alinham a políticas de mistura de usos, transformação urbana e adensamento de regiões centrais tão necessárias para mitigar a histórica segregação espacial enfrentada pelas cidades brasileiras. Não surpreende que a secretária de Urbanismo do Rio de Janeiro argumente nesta linha, que o PL oferece “a chance de reaproveitar terrenos e prédios ociosos em áreas com transporte e infraestrutura. Com a pandemia, vemos o Centro do Rio esvaziado. A aprovação do projeto traz solução para isso, permitindo que edifícios comerciais sejam transformados em residenciais, por exemplo.”
Outras cidades brasileiras já exerceram políticas no sentido de regularizar construções ou atividades irregulares que, sob uma avaliação pragmática da realidade urbana da cidade, não teriam impacto negativo — ou teriam, ainda, impacto positivo. São Paulo, quando revisou sua Lei de Zoneamento em 2016, diminuiu as exigências para a regularização de pequenos comércios, pensando principalmente em áreas periféricas. Vale lembrar que, na época, a emenda que visava esse objetivo foi apelidada de “emenda do puxadinho”.
A Lei da Anistia, aprovada no final de 2019, vai no mesmo sentido, na expectativa de regularizar 150 mil dos mais de 500 mil imóveis irregulares na cidade. Em virtude da pandemia, a Lei da Anistia foi prorrogada até 2021 pela Câmara dos Vereadores de São Paulo. Da mesma forma, Fortaleza vem simplificando os critérios para regularização, formalizando atividades econômicas e permitindo avanços como a regulamentação das unidades compactas, gerando um aumento significativo na emissão de licenças e possibilitando a entrada de microempreendedores na economia formal.
Diferente do PLC 174, tanto projetos de regularização fundiária pelo Brasil inteiro como as propostas citadas de São Paulo e Fortaleza têm cunho social e urbanístico, não necessariamente exigindo pagamento para tal regularização e permitindo que pobres morando em áreas irregulares tenham sua formalidade estabelecida. Uma política urbana de formalização mais ampla, no entanto, não precisaria descartar o pagamento pelas irregularidades: comunidades pobres poderiam ser isentas, enquanto moradores ricos em áreas formais e consolidadas, que cometeram irregularidades não por necessidade mas por vontade própria, poderiam ser sujeitas a multa no ato de regularização.
A forma como o PLC 174 foi aprovado no Rio de Janeiro pode ser condenável. Isso não significa, no entanto, que o seu conteúdo deve ser ignorado ou, pior ainda, estigmatizado no debate urbano sobre a regularização de imóveis hoje irregulares. O maior problema que as cidades brasileiras enfrentam atualmente é a divisão entre a cidade formal e a informal. A legislação urbanística brasileira deve atacar diretamente este problema, tratando a cidade de forma conjunta e única, deixando de valer somente para alguns e finalmente reconhecendo que a informalidade nas nossas cidades é imensa. Para isso, não conseguiremos fugir da regularização de alguns imóveis atualmente considerados irregulares, incorporando critérios mais flexíveis na legislação urbanística.
Fonte: “Caos Planejado“, 24/8/2020