Aos olhos de quem vê e procura entender os fatos sociais, exsurge nítido traço de proeminência do Supremo Tribunal Federal (STF) no atual arranjo do poder republicano. Antes de análises qualitativas, o fundamental é reconhecer a realidade posta, buscando suas causas e razões superiores. Sabidamente, é lição antiga que as lógicas de poder são fluidas e dinâmicas, amoldando-se às conformações da circunstância histórica e a seus
enredos inesperados. Daí, a velha máxima de Otávio Mangabeira de que “ninguém podetudo. Sobretudo, ninguém pode sempre”.
Tal compreensão da imponderabilidade do futuro informa antiga tradição política de absoluta cautela e prudência no trato dos altos assuntos do poder. Isso não significa que a ousadia e o ímpeto sejam elementos desprezíveis, apenas que não bastam por si só. Afinal, o ousado burro, na ânsia do querer, meramente vai até ali, enquanto o ímpeto desmedido abre perigosamente o flanco, criando vulnerabilidades, e não forças de sustentação. Por assim ser, os movimentos do poder exigem tato, inteligência e antevisão estratégica, evitando projeções intempestivas e holofotes que ofuscam a razão pensante. No deslinde de situações nodais, o trabalho silencioso é infinitamente mais poderoso que o barulho das superfícies.
Sem cortinas, as hipertrofias de poder resultam de atrofias institucionais paralelas. Ou seja, o acentuado protagonismo da Suprema Corte não caiu do céu nem traduz ato de vontade divina. O fato é que o Executivo e o Legislativo estão, faz anos, a conceder, paulatina e sucessivamente, fatias de poder político democrático para a esfera judicial. O medo e a covardia na assunção de responsabilidades políticas – em tese, intransferíveis –, gerando indecisões, conflitos e tensionamentos no ambiente social, acabaram por fragilizar o núcleo de representatividade da política, outorgando ao STF, por vias transversas, larga capacidade de decisória que, não raro, transpõe os limites do jurídico para a vastidão do universo político.
Quanto ao ponto, é dito e redito por aí que, uma vez provocado, o Supremo tem que decidir. A expressão, todavia, merece temperamentos. Isso porque, do alto de sua autoridade, cabe à Corte analisar se a questão posta é realmente jurídica ou se apenas fantasiada em algum instrumento processual vazio. Em outras palavras, a subversão das instituições jurídico-processuais, com indevida provocação da Suprema Corte sobre matérias genuinamente políticas, deveria ensejar o não conhecimento de tais expedientes judiciais fantasiosos. Numa sentença irrecorrível, a garantia do devido processo legal não tolera a indevida provocação do Tribunal Constitucional. Aliás, o manejo processual para fins ilegais é causa bastante de litigância de má-fé, nos termos da lei.
O Supremo, portanto, precisa começar a dizer “não”, pois, ao dizer “sim” para tudo, acaba por banalizar sua própria autoridade. Em palavras memoráveis, a nobre inteligência de Louis Barthou, ex-ministro da Justiça da França, assentou não estar “longe de acreditar que a civilização de um país se mede pela opinião que se tem de sua magistratura, da autoridade ou do descrédito desta, do seu brilho ou de sua fraqueza, de sua imparcialidade ou de sua subserviência. A Justiça é o símbolo e o reflexo dos costumes públicos. Cada povo tem a magistratura que merece”. E, ao lembrar de Pedro Lessa, Amaro Cavalcanti, Philadelpho Azevedo, Victor Nunes Leal, Prado Kelly, Oswaldo Trigueiro, Aliomar Baleeiro, Paulo Brossard, entre tantos nomes superiores, não faltam lustros a
enaltecer a suprema magistratura brasileira.
À luz de referências categóricas, é preciso olhar ao alto, elevar o sentimento de justiça perante a Nação e deixar que os assuntos de política ordinária sejam resolvidos por suas próprias forças. Decididamente, não cabe ao Supremo assumir responsabilidades que não são suas. Se a política for precária e insuficiente, é preciso que tal precariedade e insuficiência fique exposta aos olhos do povo. O processo de pedagogia democrática não
se faz com atropelos republicanos nem com atalhos institucionais. A boa intenção, por instrumentos errados, produz resultados defectivos. Um povo que não é ensinado a escolher bem estará reiteradamente condenado a maus governos.
No cair da noite, a decadência do ensino público nacional atende a interesses definidos, totalmente alheios à elevação moral e intelectual dos brasileiros e de nossa democracia política. O domínio pela ignorância é linearmente mais fácil do que por métodos de persuasão racional. Na antessala dos acontecimentos, quando a razão cala, a emoção ganha voz, guiando as escolhas pelo calor de apetites passageiros. Despida de razoabilidade crítica, a democracia vê-se desorientada entre irracionais (e rasos) polos antagônicos.
Ao final, ao invés de maiorias consensuais, temos apenas frágeis vitórias emocionais de ocasião. Uma fragilidade política essencialmente humana que não se corrige por sentenças judiciais. Por tudo, antes de decidir muito, o Supremo deve decidir bem. E, para decidir bem, é preciso, fundamentalmente, respeitar os limites jurídicos do possível.