Nesta coluna, compartilho com os leitores a leitura que faço do julgamento da ação penal 470, popularmente conhecida como mensalão, que ocorre no Supremo Tribunal Federal (STF).
Dependendo da forma como o Supremo se pronunciar, ele dará contribuição fundamental ao combate à corrupção. Como diversos trabalhos sugerem, a redução da corrupção deve ter impactos positivos sobre o crescimento no longo prazo de nossa economia.
A grande dificuldade em crimes do colarinho branco é que é difícil haver prova material. Assim, o julgamento há que se basear em provas circunstanciais ou indícios.
Um exemplo paradigmático foi o caso do escândalo dos anões do Orçamento em 1993. O deputado João Alves, para justificar a evolução de seu patrimônio, explicou que Deus lhe dera muita sorte e apresentou como prova diversos bilhetes premiados de loteria.
Não há prova material. De fato, a prova material, os bilhetes de loteria, concorriam para a absolvição. O problema é que a probabilidade de que esse evento ocorra é praticamente nula.
Nesse ponto, a sociedade pode perseguir dois caminhos distintos. Primeiro, alegar que é obrigação do Judiciário produzir as provas materiais. No caso do deputado João Alves, o Judiciário deveria mostrar que ele comprava os bilhetes premiados, o que provavelmente inviabilizaria a caracterização de culpa, pois João Alves havia tomado precauções para encobrir as operações.
Um segundo curso de ação que a sociedade pode tomar é reconhecer que a probabilidade de alguém ganhar inúmeras vezes em uma loteria é praticamente nula e, portanto, que o Judiciário deve condená-lo baseado nessa evidência.
Assim, quando tratamos de crimes do colarinho branco, em geral as provas são circunstanciais. Dificilmente há prova material contundente.
O Judiciário tem que trabalhar com dois tipos de erro: condenar um inocente ou não punir um culpado.
Há um teorema conhecido em estatística que mostra que, se as regras processuais forem construídas de forma a que a probabilidade de prender um inocente por crimes do colarinho branco seja nula, a probabilidade de prender um culpado também será nula.
O Brasil deve ser o país no qual o sistema jurídico evita com mais força a condenação de um inocente.
Pode-se afirmar que é praticamente impossível um inocente com um bom advogado ser condenado por crime do colarinho branco.
Isso porque nós devemos ser o único país no mundo no qual:
. há quatro instâncias de julgamento (Justiça de primeiro grau, de segundo grau, Superior Tribunal e Supremo Tribunal);
. sempre é possível recorrer da sentença e qualquer ato jurídico é passível de um recurso;
. a litigância de má-fé dificilmente é caracterizada nos tribunais;
. e, finalmente, temos o princípio de que a presunção da inocência somente deixa de existir depois que todas as instâncias se pronunciam sobre todos os recursos!
Além de todo esse pacote, a tradição de nosso Judiciário é somente aceitar evidência material contundente.
O STF, ao aceitar uma série de provas circunstanciais como prova de um crime de colarinho branco, reduz o requerimento para a condenação.
No Direito, existe o princípio de que, se houver dúvida, o réu deve ser considerado inocente (in dubio pro reo). No Direito norte americano existe outro princípio, de que se a dúvida que existe com relação à culpa de um réu for além de uma dúvida razoável (“beyond any reasonable doubt”), o Judiciário deve condenar o réu.
Vejo na decisão do STF um sinal de democratização de nossa sociedade. O elevadíssimo e excessivo requerimento de prova para crimes do colarinho branco é um entulho da sociedade oligárquica no qual a Justiça dos homens bons é diferente da Justiça dos comuns.
Oxalá o próximo passo de democratização de nosso Judiciário seja a aprovação pelo Congresso do projeto de emenda constitucional (PEC) de autoria do ministro Cezar Peluso e iniciativa do senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES).
A PEC determina que o cumprimento da pena, em caso de condenação, comece em seguida à condenação na Justiça de segundo grau. A pessoa pode ter acesso às instâncias superiores, mas cumprindo a pena.
Fonte: Folha de S. Paulo, 09/09/2012
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