Como observa o desembargador José Renato Nalini, o Judiciário trabalha basicamente com o passado: “Diante de uma ocorrência temporalmente situada aciona-se o Judiciário. Mediante o processo, ciência reconstrutiva, busca-se reconstituir o passado e suas circunstâncias. A melhor decisão seria aquela voltada à ressurreição do passado”.
Esse é o desafio ora enfrentado pelo Supremo tribunal Federal (STF) no julgamento dos planos econômicos. Esses planos, para quem não lembra, foram adotados de 1986 a 1991 para controlar uma inflação cada vez mais alta. Como recorriam a congelamentos de preços, precisavam ter regras de transição entre o período pré-plano, quando a inflação era alta, e o pós-plano, quando caía, pelo menos no início. Essas regras eram necessárias para alinhar os preços relativos, já que eles não mudam todos juntos, e corrigir o valor de ativos financeiros.
O objeto da disputa no STF são as regras de transição adotadas nos planos Bresser (1987), Verão (1989), e Collor I (1990) e II (1991). A ação judicial foi iniciada pelos detentores de depósitos de poupança, que argumentam que as regras de transição adotadas transferiram parte de seu patrimônio para os bancos. A reconstituição do passado que os poupadores defendem ser correta envolve, portanto, pagamento a receber dos bancos para desfazer a alegada transferência patrimonial.
A “ressurreição do passado” exige, nesse caso, responder a duas questões: houve perda para os poupadores? A perda, se ocorreu, beneficiou os bancos? Ainda que sejam necessárias, as respostas não são, no meu entender, suficientes. Assim, há que considerar também, de um lado, as circunstâncias, como lembra o desembargador Nalini, e, de outro, a factibilidade de ressuscitar o passado na realidade presente.
Em relação às duas primeiras questões, devem-se separar os planos. Em especial, nos Planos Collor I e II, o dinheiro dos poupadores estava quase integralmente depositado no Banco Central (valores acima de 50 mil cruzeiros novos, algo como R$ 13 mil em valores de hoje). Nesse sentido, os bancos não podem ter se beneficiado. De fato, o banco JP Morgan nota que eles ganharam 84% dos casos em que se julgou o mérito da questão.
Nos Planos Bresser e Verão, a regra de transição envolveu mudança no cálculo do IPC, o índice que corrigia os depósitos de poupança: a inflação do período pré-plano foi calculada usando não a média de preços no mês mais recente, mas os preços no último dia. Isso aumentou a inflação pré-plano e reduziu a pós-plano, mas não alterou a inflação acumulada nos dois meses. Nesse sentido, os bancos argumentam não ter havido perda para os poupadores, pois a menor correção de um mês teria sido compensada pela inflação mais alta do outro.
Nesse caso, portanto, teria havido perda apenas em casos excepcionais. Isso não significa, porém, que os bancos necessariamente ganharam, pois, por força de dispositivo legal, no mínimo 80% dos recursos da poupança são usados para financiamento imobiliário ou depositados no Banco Central. Como a correção do valor dos ativos obedeceu à mesma regra de transição aplicada à poupança, a perda, caso tenha ocorrido, terá beneficiado majoritariamente os clientes das instituições financeiras.
Há também circunstâncias a considerar. Nos quatro planos, a regra de transição foi instituída por lei de iniciativa do Executivo e aprovada pelo Congresso Nacional. Ou seja, os bancos apenas seguiram a lei. Se o STF decidir contrariamente aos bancos, portanto, estará criando difícil precedente, de punir um agente por ter seguido a lei em assunto de caráter puramente econômico. Isso coloca problemas do ponto de vista da segurança jurídica.
Por fim, devem pesar na balança as consequências da decisão para a sociedade como um todo. Se os bancos perderem, terão de retirar os recursos do próprio patrimônio, o que diminuirá a capacidade de emprestar. As estimativas dos valores envolvidos variam muito, pois dependem da abrangência da decisão (nacional ou estadual, todos os planos ou só alguns) das regras de atualização monetária e se e como incidirão juros de mora. Mesmo assim, são valores substanciais, que vão de R$ 25 bilhões a mais de R$ 300 bilhões – um terço do custo recairá sobre a Caixa.
De tudo isso, vê-se quão importante é ter deixado essa época para trás. Mais uma razão para celebrar este ano o aniversário de 20 anos do Plano Real, que não recorreu a esse tipo de medida.
Fonte: Correio Braziliense, 26/02/2014
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