Ativista pró-direitos humanos conta a barbárie no Irã, onde uma pessoa é executada a cada 8 horas
A iraniana Mina Ahadi mora há catorze anos na Alemanha, mas pouquíssimos amigos sabem exatamente onde. Desde que ela criou o Conselho de Ex-Muçulmanos, entidade de apoio a pessoas que abdicaram da fé islâmica, passou a receber ameaças de morte que a obrigam a viver quase reclusa.
Renunciar ao Islã é considerado entre muçulmanos uma ofensa grave, punível com pena de morte em países como o Irã, que Mina foi obrigada a deixar depois que os aiatolás tomaram o poder, em 1979.
Então uma líder estudantil, ela foi perseguida pela Guarda Revolucionária, teve o marido executado e sua cabeça posta a prêmio.
Conseguiu asilo político na Áustria e depois se mudou para a Alemanha, onde hoje chefia os Comitês contra a Execução e o Apedrejamento. Mina Ahadi falou a VEJA em um hotel em Colônia.
A senhora foi uma das pessoas que mais lutaram para que Sakineh Ashtiani — acusada de adultério e, mais tarde, de participação na morte do marido — não fosse executada por apedrejamento. Como se sentiu ao ouvi-la dizer em entrevista à televisão estatal: “Mina Ahadi, afaste-se de mim, não é da sua conta se eu sou uma pecadora”?
Mina Ahadi: Sei que Sakineh está sob pressão e foi forçada a dizer isso para se salvar. Isso não me incomoda. Também seu filho foi obrigado a declarar diante das câmeras que acredita na culpa da mãe. Mas eu penso que Ahmadinejad [o ditador iraniano Mahmoud Ahmadinejad] vai precisar de outra vítima para demonstrar a sua força.
Sakineh já está salva. Por quê? Graças à repercussão que o caso alcançou, o regime não pode mais executá-la — nem pública nem clandestinamente. O governo já está convencido disso. Apenas busca achar um meio de não sair desmoralizado do episódio. Todo esse processo, no fim, foi bom para o Irã. Chamou a atenção do mundo para a barbárie do regime. Antes do caso Sakineh, a preocupação dos países em relação ao Irã se limitava à questão nuclear.
Mas não há sinais de que o governo de Ahmadinejad esteja cedendo a essa pressão mundial. Pelo contrário, medidas recentes apontam para uma “talibanização” do regime, como a reforma curricular destinada a “livrar os estudantes da influência ocidental” e a proibição do uso de determinadas roupas e acessórios.
Ahadi: O Irã neste momento é um país muito instável e seus governantes estão perigosamente próximos dos mulás dos anos 80. Desde as manifestações de 2009 e a morte de Neda [a estudante Neda Agha Soltan, que, ferida por um tiro disparado por um membro da milícia islâmica, teve a agonia registrada em um vídeo que correu o mundo], o governo aumentou a pressão sobre os estudantes, as mulheres e os trabalhadores.
Ele sabe que qualquer fagulha pode desencadear um incêndio. A derrubada do regime de Ben Ali [o ditador Zine El Abidine Ben Ali] na Tunísia deve fazer com que as medidas de repressão se intensifiquem ainda mais. As execuções, por exemplo, estão aumentando de maneira assustadora.
E vêm sendo conduzidas de uma forma como fazia tempo não se via. Os nomes dos executados voltaram a ser publicados nos jornais oficiais. Na semana passada, eles trouxeram mais dez. Desde janeiro, a média no país tem sido de uma execução a cada oito horas.
Quais são os crimes que mais têm resultado na pena de execução?
Ahadi: As execuções por acusação de envolvimento com drogas têm sido muito frequentes. Há duas semanas, um jovem de 23 anos foi morto por portar 50 gramas de heroína. No início do mês, outro jovem, acusado de esfaquear um amigo em outubro do ano passado, recebeu cinquenta chibatadas. No dia seguinte, 5 de janeiro, ele foi enforcado em praça pública.
Isso se passou em Teerã — não numa vila longínqua, mas na capital do país. A TV estatal mostrou-o caminhando para a execução com as mãos amarradas e o olhar muito assustado [assista ao vídeo no site de VEJA e em VEJA iPad). Depois, um repórter entrevistou parentes da vítima e outras pessoas na multidão, perguntando o que haviam achado do que viram. Em todas as entrevistas que foram ao ar, os entrevistados declararam considerar aquela execução positiva e agradeceram ao presidente pela medida.
Execuções públicas são frequentes em Teerã?
Ahadi: Não, fazia muito tempo que isso não ocorria. Trata-se, claramente, de uma nova tática do regime para infundir o terror na população. As prisões estão lotadas. Há, inclusive, crianças e adolescentes aguardando fazer 18 anos para ser executados. Praticamente todos os dias eu recebo chamadas de condenados me pedindo ajuda.
Ontem à noite, minha filha pediu que eu desligasse o celular: “Mãe, vamos ver um filme sossegadas. vamos ficar pelo menos uma noite sem ouvir más noticias”. Eu desliguei o aparelho, e hoje de manhã havia sete mensagens, uma delas com voz de criança. Ela falava baixo, provavelmente porque não podia falar alto: “Por favor, por favor, atenda o telefone, eu preciso de ajuda”.
Que crime essas crianças e adolescentes cometeram?
Ahadi: Alguns são acusados de assassinato, outros de envolvimento com drogas. Mas os julgamentos muitas vezes se baseiam no testemunho de uma única pessoa, ou num comportamento que o estado considera criminoso, como o sexo entre dois homens ou duas mulheres.
Estou em contato com a família de dois adolescentes presos porque um deles gravou no seu celular cenas de sexo que teve com o outro e as imagens caíram nas mãos da polícia. Foram condenados à morte por apedrejamento. Como acontece muitas vezes, os familiares não querem ajuda.
Por vergonha?
Ahadi: Para não terem sua reputação comprometida. Eles preferem que os jovens fiquem presos.
Preferem inclusive que sejam apedrejados?
Ahadi: Eles não querem que o caso venha a público. O pai de um desses jovens me disse: “Deixe a nossa família em paz”. Para os homens, principalmente, trata-se de uma desonra muito grande. Agora, estou tentando entrar em contato com as mães desses rapazes.
A senhora pode descrever uma execução por apedrejamento?
Ahadi: Ela acontece em geral ao amanhecer. A pessoa condenada tem as mãos amarradas nas costas e é envolta em uma mortalha branca. Fica totalmente embrulhada nesse pano, o rosto também. Então, é colocada de pé num buraco fundo e coberta de terra até o peito, no caso das mulheres, e até a cintura, no caso dos homens. Dependendo da condenação, é o juiz quem atira a primeira pedra. Mas pode ser também uma das testemunhas.
Se a vítima é uma mulher sentenciada por adultério, por exemplo, tanto o seu marido quanto a família dele podem lançar as primeiras pedras. A lei diz que elas têm de ser grandes o suficiente para machucar a vítima, mas não para matá-la no primeiro ou segundo golpe.
Quanto tempo ela leva?
Ahadi: Pode levar quinze minutos, pode levar mais de uma hora. Um médico fica no local para, de tempos em tempos, verificar se o apedrejado ainda esta vivo. Até o fim dos anos 80, o apedrejamento no Irã era um ritual público — assim ordenava a lei.
O horário e o local eram anunciados no rádio, nos jornais e na TV. Qualquer um podia comparecer. Mas houve alguns episódios em que as pessoas se manifestaram contra a prática. Num deles, chegaram a atirar pedras contra os mulás presentes. Em 1997, na cidade de Bukan, o apedrejamento de uma mulher acusada de adultério acabou suspenso devido aos protestos e a interferência da multidão.
A mulher — seu nome é Zoleykhah Kadkhoda — foi levada ao hospital quase morta, mas sobreviveu e esta viva até hoje. Depois disso, as execuções passaram a ser fechadas. Agora, a polícia religiosa é que atira as pedras.
Quantas pessoas estão condenadas ao apedrejamento hoje no Irã?
Ahadi: Mais de 100 pessoas já foram mortas dessa forma pelo estado desde 1979 e outras 27 aguardam na fila.
A presidente do Brasil, Dilma Rousseff, posicionou-se publicamente contra a prática do apedrejamento, que classificou de barbárie. Qual a expectativa que a senhora tem desse novo governo?
Ahadi: O que eu espero da presidente Dilma é que ela faca o que seu antecessor não fez: que condene a situação dos direitos humanos no Irã e se recuse a manter relações diplomáticas com um regime assassino como o de Ahmadinejad, a quem Lula chamava de “amigo”.
A senhora foi perseguida pelo regime do xá Reza Pahlevi por suas atividades como líder estudantil. Com a Revolução Islâmica, tornou-se alvo dos aiatolás ao liderar um movimento contra o uso obrigatório do véu…
Ahadi: Sim, sim, mas não há comparação. Como líder estudantil em Tabriz, tive problemas durante o regime do xá: não podia ler alguns livros, dizer algumas coisas, tinha de me apresentar de tempos em tempos a polícia, mas era, por assim dizer, um jogo com regras claras. Com Khomeini, no entanto [o aiatolá Ruhollah Khomeini, líder do movimento que, em 1979, derrubou a monarquia iraniana e instalou a teocracia no país], tudo ficou muito mais brutal.
Ele criou a Guarda Revolucionária, uma milícia cruel e impiedosa, principalmente para com as mulheres. Tínhamos de escolher entre o véu e as chibatadas. Quando fizemos essa manifestação contra o uso do véu, tudo transcorreu sem incidentes. Mas, no dia seguinte, quando cheguei à faculdade onde estudava medicina, não pude entrar. Havia um soldado da Guarda com uma lista de nomes de alunos que tinham sido expulsos.
Eu cursava o ultimo ano a faculdade, já trabalhava no hospital da universidade e não pude me formar.
Foi então que a senhora se exilou na Europa?
Ahadi: Não. Meu marido não foi expulso como eu e continuou seus estudos de física. Eu passei a trabalhar como operária na fábrica da Pepsi e, à noite, escrevia panfletos contra o regime. Tinha uma maquina de datilografar muito velha que fazia um tremendo barulho. Era preciso vedar a porta e a janela do nosso apartamento para poder bater os textos de modo a não chamar a atenção dos vizinhos.
Um dia, quando voltava da fábrica para casa, vi um membro da Guarda parado em frente ao meu prédio. Dei meia-volta e não entrei. Eles levaram meu marido e cinco outras pessoas do nosso grupo que estavam hospedadas em casa, três homens e duas mulheres. Tirando as mulheres, que foram libertadas mais tarde, todos foram executados, inclusive meu marido.
Eu consegui fugir para Teerã e, de lá, fui para o Curdistão. Depois, como asilada política, morei seis anos em Viena, na Áustria. Estou há 14 anos na Alemanha.
Aqui, na Alemanha, a senhora criou um comitê para muçulmanos que renunciaram à fé islâmica, o que lhe rende ameaças de morte até hoje. O que a motivou a fazer isso?
Ahadi: Acredito que, como eu, muitos imigrantes de países muçulmanos vieram para cá em busca de uma vida melhor, o que inclui mais liberdade. E essas pessoas não precisam estar fadadas a viver em uma sociedade paralela, em que as crianças não podem ter amigos de outro sexo ou frequentar aulas de natação por causa de uma religião na qual, eventualmente, elas não acreditam mais.
O que nós queremos e romper esse tabu, e apoiar as pessoas na decisão de libertar-se desse Islã que se voltou contra os muçulmanos.
A senhora se considera uma ex-muçulmana?
Ahadi: Sim, desde os 15 anos, quando deixei de fazer minhas preces. Nas ultimas décadas, em muitos lugares, o islamismo tornou-se uma ferramenta de manipulação política, e não uma religião restrita a esfera privada.
Há muito tempo esse Islã deixou de fazer sentido. Hoje, para mim, ele significa apenas barbárie e crueldade.
Publicado na revista “Veja”
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