Os votos dos desembargadores da 8.ª turma do TRF-4 condenando um ex-presidente da República por corrupção passiva e os votos dos ministros da 5.ª Turma do STJ negando o habeas corpus preventivo por ele pedido surpreenderam no plano formal. As palavras foram mais claras do que o costumeiro nos tribunais, permitindo a compreensão, por quem não é afeito à técnica jurídica, dos argumentos invocados para justificar as duas decisões. Neste momento em que críticas procedentes e improcedentes à Justiça se embaralham no debate público, esses julgamentos foram dignos de nota.
O modo como cada voto foi escrito não é usual no Judiciário, em que petição inicial é chamada de peça exordial, inquérito policial é tratado como caderno indiciário e juízes são cognominados de alvazires. Há alguns anos os jornais noticiaram que um juiz do interior de Santa Catarina ordenou o envio de um ladrão a um ergástulo público, mas a ordem demorou dias para ser cumprida porque as autoridades policiais não sabiam que a expressão significa cadeia. Não ficam atrás as instâncias superiores, em que há quem afirme que “o fragor do derruimento da tese de dolo vem escoltado pelo estrugir do desmoronamento da tese de cessão ilegal do contrato e quejandos, barulhos só comparáveis com o ribombo do esboroamento da tese de ilegitimidade de parte”. Reforçada pelo estilo de Ruy Barbosa, ícone dos operadores jurídicos, a obsessão pela prolixidade nos meios forenses é antiga. Um aluno de pós-graduação me trouxe uma sentença prolatada na cidade de Mariana, em outubro de 1883, na qual o juiz que julgou um caso de assédio sexual condenou o acusado alegando que comete “crime e pecado mortal o indivíduo que confessa em público suas patifarias e seus deboches e faz godas de suas vítimas, desejando a mulher do próximo para com ela fazer suas chumbregâncias”.
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Embora a retórica consista na arte da persuasão por meio da argumentação, essas formas pretensiosas de expressar tornam hermético o discurso jurídico. É por isso que o “juridiquês” é comparado ao latim das missas, encobrindo um mistério que amplia a distância entre a fé e os fiéis e conferindo autoridade e prestígio a quem sabe manipular essa linguagem. Nesse sentido, juízes e desembargadores não destoam de bispos e cardeais. Suas formas estereotipadas de argumentação e seus clichês pseudofilosóficos implicam a cristalização de visões de mundo e valores abstraídos das situações que condicionaram sua produção, mas que geram um efeito de racionalidade para as descrições das relações econômicas, políticas e jurídicas. Graças a suas formas prolixas de comunicação, eles podem apresentar os elementos, os fatores e as funções das relações sociais como objetos que têm uma existência autônoma e superior à dos cidadãos. Também podem expressar o Direito por meio de discursos morais e punitivos.
A vida do Direito, porém, não se resume à criação e aplicação de leis. Como a norma se exprime por palavras e elas têm os mais variados significados, isso faz da interpretação das leis e da argumentação jurídica atividades essenciais à vida do Direito. Do mesmo modo que interpretar uma norma é compreender a interpretação que seu autor fez dos acontecimentos no momento em que a editou, o sentido dessa norma não se esgota no seu valor léxico. Também depende das implicações semânticas aduzidas pelos grupos sociais em que foram concebidas ou como estão sendo aplicadas. É por isso que os textos jurídicos são passíveis de diferentes interpretações, resultando em decisões divergentes, sejam elas justificadas por uma linguagem empolada, como a prevalecente no cotidiano forense, ou por meio de uma linguagem direta, como se viu no julgamento do TRF-4. Como a linguagem literária, a linguagem jurídica refere-se à vida social e as palavras utilizadas no universo forense tendem a adquirir uma força e um valor de expressão próprios. Não é por acaso que, por ser cultivada pelos operadores jurídicos e mesmerizada pelos leigos, a retórica jurídica empolada confere aos textos jurídicos um poder simbólico.
A discussão não é nova no país. Ela ganhou destaque nas décadas de 1980 e 1990, quando juristas críticos oxigenaram a agenda da teoria do Direito ao propor um conjunto de contra-linguagens que, sem constituir necessariamente um corpo sistemático de categorias, explicitasse as condicionantes das significações jurídicas. Num mundo onde os meios de comunicação maximizaram suas possibilidades de massificação não questionadora da ordem estabelecida, diziam os críticos, só por meio de um esforço descontrutivista é que se poderia desnudar o senso jurídico comum reproduzido nas atividades forenses e analisar as condições de funcionamento do Direito como forma específica de controle social. Recorrendo a Michel Foucault, eles se propuseram a denunciar as implicações dos campos de significação jurídica sobre as relações sociais, sobre a lei que as organiza e sobre os sujeitos que as manipulam. Para esse autor, então lido avidamente pelos críticos, o jogo da história seria de quem se apropriasse das normas, de quem ocupasse o lugar do que as aplicam e de quem conseguisse direcioná-las contra aqueles que as tinham imposto.
Nestes tempos em que investigações capazes de desmontar esquemas de ocultação de propriedade e elisão de identidade se sobrepõem às pesquisas doutrinarias na justificação de sentenças e acórdãos, como ocorreu com a decisão do TRF-4, vale a pena retomar essa discussão. Se no universo literário escrever é a arte de combinar e cortar palavras, no mundo do Direito discutir a interpretação das normas e a argumentação dos juízes é uma forma de refletir sobre o poder do conhecimento e da retórica jurídica na sociedade. E, também, de compreender por que nenhuma decisão judicial é capaz de alcançar unanimidade entre operadores do Direito e a opinião pública, como poderá ser visto quando o STF julgar novos recursos do ex-presidente da República.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 20/03/2018