A reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) realizada na semana passada em Nairóbi (Quênia), na prática enterrou a moribunda Rodada Doha. Com claras manifestações dos Estados Unidos, da União Europeia e do Japão, os ministros de 162 países-membros não reafirmaram o interesse em manter as negociações da Agenda para o Desenvolvimento, pela primeira vez desde o lançamento da Rodada Doha, em 2001. Os países em desenvolvimento e os emergentes (China, Índia e Brasil) conseguiram um reduzido pacote de medidas (pendentes da Rodada Doha), incluindo a suspensão dos subsídios à exportação para produtos agrícolas até 2020 pelos países desenvolvidos (só existem na Suíça, no Canadá e na Noruega), novas orientações para financiamento de exportações agrícolas e acesso a mercados de países desenvolvidos para países pobres produtores de algodão sem prazo para sua implementação.
A declaração final mantém, portanto, a possibilidade de negociação de alguns itens de Doha e abre espaço para os temas novos no âmbito da OMC. Os Estados Unidos deixaram claro, contudo, que só se vão engajar se os entendimentos se processarem não mais segundo os mandatos de Doha e das regras da OMC. Ou seja, sem as flexibilidades hoje conferidas aos países em desenvolvimento e emergentes. Com isso a China, mas também o Brasil e a Índia, graduados, terão de negociar de igual para igual com os desenvolvidos, pois as disciplinas terão de ser as mesmas para todos, apenas com variação de prazos. Princípios como o do consenso na tomada das decisões, tratamento especial e diferenciado, “single undertaking”, e áreas como prioridade para a agricultura, eliminação dos subsídios e medidas restritivas à exportação estão ameaçados pela recusa dos países desenvolvidos e poderão não voltar a balizar as negociações no contexto da OMC.
Ao expressar satisfação com os resultados do encontro ministerial que põem um ponto final na Rodada Doha, uma das principais estratégias de negociação comercial do lulopetismo, o governo brasileiro afirmou que “os resultados alcançados em Nairóbi comprovam a capacidade da OMC em alcançar (sic) resultados relevantes num contexto multilateral e não discriminatório, quando há efetivo engajamento de seus membros. Nesse sentido, será retomada a negociação dos demais temas da Rodada Doha e examinada a existência de consenso para o tratamento de novos temas”. Resta saber com quem será retomada a negociação do pacote de consolação e como será apurada a existência de consenso para o tratamento de novos temas. Os países desenvolvidos deverão ignorar a agenda tradicional e seguir discutindo acordos plurilaterais (preferenciais e discriminatórios) em oposição aos multilaterais (aprovados por todos os países-membros) sobre temas setoriais como serviços, bens ambientais, de tecnologia da informação, sem que o Brasil até aqui tenha participado desses entendimentos.
O papel protagônico do Brasil se manteve e por sua iniciativa o encontro de Nairóbi também marcou o fim da atuação como porta-voz dos emergentes. O G-20 agrícola desapareceu pela divisão entre Brasil e China/Índia em razão de interesses divergentes quanto a salvaguardas para manter barreiras para importações de produtos agrícolas e manutenção de estoques.
Enquanto, na última década, a natureza das negociações comerciais se transformava e os países desenvolvidos avançavam os entendimentos para acordos limitados com regras que vão além da OMC, a grande maioria dos países-membros da Organização – o Brasil incluído – teimou em brigar por uma negociação multilateral com base em premissas inviabilizadas pelo crescente número de países-membros, pela complexidade das negociações e pela dificuldade de concordância em agricultura em razão da grande diferença de interesses, em especial o desejo dos países desenvolvidos de graduarem a China e acabar com seu status de membro de acessão recente.
Além do acordo da facilitação de comércio, ratificado por 57 países, foi adotado em Nairóbi o acordo de tecnologia da informação com mais de 50 participantes e está avançando acordo sobre bens ambientais. O acordo de Parceira Transpacífica, com os Estados Unidos e Japão, além de dez países, inclusive Chile, Peru e México, em nosso continente, foi concluído e deverá ser assinado em fevereiro, trazendo toda uma nova filosofia de acordos, abertos para os que quiserem aderir, com regras que vão além das existentes na OMC ou mesmo que ainda nela não existem.
Os países em desenvolvimento membros da OMC não têm alternativa. Ou aprovam a inclusão dos novos temas, setoriais, com participação limitada de países que quiserem acompanhar as novas regras – criadas por inspiração e liderança dos Estados Unidos – ou a OMC ficará restrita apenas à sua função de mecanismo de solução de controvérsias. Dessa forma, a sobrevivência da OMC se dará pela sua renovação a partir de uma nova agenda que incorpore os acordos plurilaterais e a discussão de novas regras sob um outro modelo de negociação, também plurilateral.
O governo brasileiro terá de enfrentar a nova realidade da negociação multilateral na OMC. Embora atuando em Nairóbi de forma pragmática e menos ideológica, os fatos se impuseram e não deixarão muito tempo para que o governo brasileiro ajuste as políticas de negociação comercial e a política externa às mudanças em curso.
Na reunião presidencial do Mercosul, realizada na semana passada em Assunção, continuou a incerteza quanto ao interesse da União Europeia em aceitar a negociação com o bloco. Se e quando as negociações entre o Mercosul e a União Europeia ocorrerem, as autoridades brasileiras se confrontarão com essas novas realidades e terão de atuar de acordo com os interesses do setor produtivo e exportador, e não ideológico.
Fonte: O Estado de S. Paulo, dia 29 de janeiro de 2015.
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