Quanto de endividamento e descontrole financeiro uma nação pode admitir? A resposta depende, entre outros aspectos, dos sucessos e fracassos anteriores do país no cumprimento de seus compromissos. O mesmo ocorre com cada um de nós, pois o crédito que temos na praça depende de nossa história. Os Estados Unidos têm uma grande história. Por isso, os mercados, mesmo nas condições atuais muito adversas, confiam quase cegamente na capacidade americana de dar a volta por cima.
Mas continuará sendo assim? Os Estados Unidos vivem, no momento, uma situação especial, pois o endividamento do país percorre, de alto a baixo, toda a organização social. As famílias devem aos bancos mais de 100% de sua renda anual. Os governos locais, Estados e municipalidades estão perto do esgotamento financeiro. Numa cidade como Miami, hoje povoada de brasileiros compradores de tudo, o secretário de Finanças fala abertamente da possibilidade de falência do município, até como meio de sentar-se à mesa com seus credores e funcionários públicos para renegociar termos e condições. O Estado da Califórnia vive um constrangimento financeiro trágico. Vai até o setor bancário, cuja vulnerabilidade, por falta de adequada capitalização, é de dar dó.
Alguém dirá que o governo federal é forte e haverá de resgatar a sociedade. Pelo contrário. Na atual crise financeira, o socorro do governo americano, por meio de pacotes sucessivos, deixou um rombo no Orçamento federal que levará pelo menos uma década para ser sanado, com uma projeção da dívida pública na casa de 100% da renda interna (PIB), equivalente ao esforço que os EUA haviam feito ao fim da Segunda Guerra Mundial. Daquela, porém, eles haviam saído como vencedores e donos do mundo. Nesta, doméstica, contra seu próprio descontrole, os possíveis derrotados são eles mesmos. Daí uma perceptível raiva muda do povo contra os rumos que a elite política imprimiu ao país nos últimos tempos. A sorte de uns poucos, especialmente no protegido setor financeiro em torno de Nova York, contrasta fortemente com as dificuldades gerais de quem perdeu o emprego ou teve de entregar sua casa para os credores, ou de quem fechou a empresa ou perdeu seu negócio. São milhões nessa situação.
Os EUA precisam resgatar o exemplo do agricultor George Washington, de poupança e trabalho
Ao visitar a casa do fundador da nação americana, George Washington, no local chamado Monte Vernon, numa elevação suave, com cenário natural espetacular à beira do Rio Potomac, quase de frente para a cidade que tem o mesmo nome de seu líder, dá para perceber quanto o modo de vida dos americanos e a conduta de seus políticos e alguns líderes empresariais têm se afastado do exemplo deixado por Washington. Já começa pela residência em si, construída pelo próprio Washington ao longo de muitos anos de poupança e trabalho, com recursos tirados de suas lavouras, pois ele se destacava como agricultor antes de ser general de enorme coragem ou político, duas vezes presidente por aclamação unânime da assembleia das 13 ex-colônias (conseguiu mais unanimidade que nosso presidente Lula!).
Washington sempre voltava para casa. Não era apegado ao poder e fazia questão de mostrar isso. Tinha mais o que fazer. Está enterrado no mesmo lugar que determinou, num mausoléu simples ao lado de sua casa, com a mulher, Martha, que a ele se referiu como um homem acima de vaidades, excelente e sem nenhuma ostentação, alguém que tudo arriscou na vida por seu país sem jamais ter como objetivo ganho pessoal nem projeção de poder. A história reflete a imensidão da diferença que separa as condutas políticas atuais, seja nos Estados Unidos, seja no Brasil, de um exemplo como o de Washington. Ou, para citar um brasileiro de igual competência e estatura, com história de vida semelhante, nosso José Bonifácio.
A tolerância mundial com o descontrole financeiro diminuiu muito. Os Estados Unidos precisam agora reencontrar e resgatar o melhor de sua história e a marca de suas lideranças extraordinárias, para superar uma crise que ainda os engolfa e sufoca
Fonte: Revista “Época! – 21/06/10
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