O Brasil chegou ao século 21 com alguns problemas dos séculos 19 e 20 ainda pendentes. Entre eles, a construção do mundo rural social-democrático da pequena propriedade, fornecedor e consumidor ajustado ao desenvolvimento industrial-urbano. Sua não-construção oportuna e a sedução do desenvolvimento urbano estimularam a migração para as cidades, contribuindo para a miséria, a desordem e a violência urbanas, a favelização caótica e sua agressão ambiental, deixando no campo uma população marginalizada e pobre.
Até cerca de 50 anos atrás a questão rural não fora considerada no Brasil. O mundo rural da pequena propriedade só ocorreu com algum sucesso de São Paulo ao Rio Grande do Sul, destino de imigrantes europeus na segunda metade do século 19 e início do 20. O Estatuto da Terra de 1964 teria estimulado a reforma agrária sadia, mas foi neutralizado por interesses fortes. Resultado: nossa tardia reforma agrária, atropelada pela dimensão a que chegou o problema, vem produzindo intranquilidade e dúvidas sobre seus procedimentos e objetivos. Vem instituindo duas categorias singulares: a dos acampados à espera do assentamento e a dos assentados malsucedidos, por motivos razoáveis ou porque inaptos para o campo. Distribui a terra, mas está aquém do conveniente no apoio financeiro deficiência mitigada pelo programa de assistência à agricultura familiar criado em 1995, assessoria técnica, acesso ao mercado e apoio social (saúde, escola). Sujeita assentados com exceções bem-sucedidas à vida insatisfeita e acampados ao assistencialismo e à odisseia das invasões. Enfim, o modelo vem sendo apenas limitadamente útil à criação do pequeno capitalismo social-democrático rural, como existe nos países democráticos desenvolvidos.
Cooptada no campo (homens rurais autênticos “sem terra”), mas também nas cidades (homens rurais inventados), a massa de manobra do tumulto rural vem sendo usada para seu propósito racional a reforma agrária , mas também como instrumento da ideia de mudança do eixo político e socioeconômico do País. Na crise de 2008-2009 um líder do MST afirmou que o aumento do desemprego urbano reforçaria o movimento rural, obviamente com gente não adequada ao campo, fadada ao insucesso e à revolta ressentida. Gente útil, portanto, à turbulência política porque, se bem-sucedida a reforma agrária, improvável com pessoal inapto ao campo, o pequeno proprietário “vira” um kulak social-democrata, tanto assim que eles foram eliminados na URSS.
Nesse cenário político e socioeconômico nebuloso, a causa da reforma agrária vem ensejando a jihad rural em desafio à lei e suas instituições, no estilo delituoso da “cultura da ação” dos movimentos fascistas nos anos 1920. Inserem-se aí as invasões de propriedades, pretensamente travestidas de ocupação pacífica, como se fosse pacífico intimidar com foices e facões, manter cárcere privado, destruir máquinas, benfeitorias e plantações e matar gado. Vem ensejando-a à sombra da complacência do poder público por ideologia ou interesse político e da demora no cumprimento de sentenças de reintegração de posse, que fazem das invasões esbulhos tolerados. Problema que será agravado se institucionalizada a recomendação do Decreto 7.037, de 21/12/2009, que preconiza a negociação prévia à Justiça, criando a figura da copropriedade “na marra”…!
A ambiguidade da situação, que mistura causa correta com prática delituosa para atingi-la, é bem refletida em frase do presidente da República (Estado, 15/7/2003) sobre incidente em princípio irrelevante (o boné do MST na cabeça do presidente): “Não esperava que o preconceito contra os sem-terra fosse de tamanha envergadura; eles têm uma reivindicação justa.” Não se trata de preconceito contra os sem-terra e sua reivindicação justa, mas da não menos justa contrariedade com a metodologia delituosa.
Todo esse tema diz respeito à pergunta: interessa ao Brasil acompanhar a produtividade vitoriosa na grande propriedade, pela inclusão política, social e econômica do pequeno proprietário rural.
Sua resposta transcende a ideologizada satanização da grande propriedade, necessária à produção de commodities de consumo interno e para exportação (o agrobusiness responde por cerca de 40% da nossa exportação). Nossa vedete agrícola deste início de século, que já o fora nos anos 1600, a cana, agora relacionada com os biocombustíveis, é necessariamente agrobusiness! Em país com território utilizável da extensão do brasileiro, a grande propriedade é compatível com a pequena. Aquela, produtora de commodities; esta, de alimentos, em destaque crescente com a propensão ao consumo de produtos orgânicos, exigentes de mais atenção humana e coerentes com a pequena agricultura. É preciso desenvolver tanto o agrobusiness, vital à macroestrutura econômica, como a pequena agricultura, necessária à alimentação da população brasileira, imensa e crescendo e responsável por cerca de 70% da mão de obra rural!
Há que dar vida à compatibilização no respeito ao direito, sem se engajar na fantasia ideológica antiagrobusiness, indutora de ânimo prejudicial à reforma agrária. Existem realmente casos em que a defesa da propriedade perde consistência e sentido diante da sua função social. Mas essa avaliação não cabe ao arbítrio dos movimentos salvacionistas, cabe à lei e seus instrumentos: num Estado de Direito democrático não há sentido racional em glorificar o delito como meio de fazer justiça!
O encaminhamento dessa questão dirá se o campo continuará contribuindo para a vida nacional como contribuiu na nossa História; dirá se vamos ter um pequeno capitalismo social-democrático rural, útil à tranquilidade democrática do País, ao lado do grande agrobusiness. Ou se o campo continuará palco da desordem que se vale da justa meta da reforma agrária e das agruras da massa rural, com vista ao eixo político-ideológico.
Fonte: Jornal “O Estado de S. Paulo” – 24/06/10
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