Em momento de intransigência, seria aventura novo processo constituinte
Reza a lenda que o Barão de Rothschild dava o seguinte conselho aos investidores: quando houver sangue nas ruas, compre tudo. Como o oportunismo aflora em tempo de crise, para aqueles que não querem ver sangue nas ruas talvez o melhor conselho seja abraçar a Constituição.
Embora estejamos todos angustiados para encontrar um caminho rápido para sair da crise em que nossas elites políticas e econômicas nos meteram, convocar uma assembleia constituinte não me parece o mais prudente. E isso por diversos motivos.
Em primeiro lugar porque nossa crise não é do regime, como aconteceu no final do período militar, mas de lideranças. E sem lideranças políticas capazes de negociar um novo projeto de país e arquitetar as instituições responsáveis por levá-lo a cabo, dificilmente conseguiremos elaborar uma Constituição melhor do que a que hoje temos.
Com a desmoralização de nossa classe política e seus partidos, uma eventual eleição para uma assembleia constituinte seria muito provavelmente dominada por lideranças religiosas, celebridades, populistas ou mesmo pelo crime organizado. A escassez de recursos e de autoridade política favoreceria tanto aqueles que contam com fontes difusas de financiamento de campanhas como as igrejas e o crime organizado, quanto aqueles que já são conhecidos da população pelas suas ideias simplistas ou seu status mediático.
O resultado provavelmente seria uma Constituição moralmente conservadora, politicamente excludente e economicamente indulgente. Num momento de forte intransigência, em que os diversos segmentos da sociedade negam aos demais igual respeito e consideração, seria uma aventura abrir um novo processo constituinte.
Embora nossa Constituição não seja um primor, ela tem inúmeras virtudes, entre elas uma enorme capacidade de adaptação. Nesses quase trinta anos fomos capazes de aprender muito em matéria constitucional. Maiorias consistentes promoveram mais de 90 alterações no texto, reformulando por completo nosso sistema econômico, reformando a administração e mesmo a previdência, tudo dentro de um clima de plena normalidade democrática e sob o constante escrutínio do Supremo.
Se hoje podemos livremente nos mobilizar contra o governo; se a Justiça pode levar a cabo, com autonomia, processos inimagináveis no passado; se a imprensa pode investigar e promover um livre debate de ideais; é porque a Constituição contribuiu para a consolidação de ambiente democrático, que não podemos colocar em risco.
Não será simples superar nossa crise política. Será preciso arte e fortuna. O primeiro passo é insistir nas reformas incrementais voltadas a racionalizar nosso sistema representativo. Já aprovamos a Lei da Ficha Limpa e eliminamos as doações empresariais. Resta agora proibir as coligações e criar uma cláusula de barreira, reduzindo os incentivos para a proliferação de partidos parasitas. Os novos e bem-intencionados partidos precisam criar convergências e abandonar o sectarismo militante se quiserem fazer parte da política. Por fim, há que se lutar contra o voto em lista fechada, que estabelece um biombo entre o eleito e o cidadão, retirando desse a soberania do voto. Não podemos nos deixar seduzir pela tentação de trocar velhos vícios por novos erros.
A hora é de lutar pela democracia nos marcos da Constituição.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 15/04/2017
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