Li fragmentos, divulgados pela imprensa, do denominado III Plano Nacional de Direitos Humanos. Pareceu-me um amontoado de idéias em que predominam platitudes e bizarrices, reproduzindo velhos discursos marcados pelo radicalismo hiperbólico. Surpreendi-me, entretanto, com uma esdrúxula referência ao imposto sobre grandes fortunas.
Ao compulsar o Decreto nº 7.037, de 2009, que aprova o mencionado Plano, pude constatar que se trata de um modorrento calhamaço de 228 páginas, no qual há uma furtiva menção àquele imposto. A proposição seria “regulamentar a taxação do imposto sobre grandes fortunas previsto na Constituição”. A cerimoniosa referência ao texto constitucional não salva a pobreza da frase. Como regulamentar o que jamais foi instituído? Como “taxar” um imposto?
A inserção da proposta no Plano, por sua vez, é singularmente pitoresca. Ela integra o “Objetivo Estratégico II” (afirmação dos princípios da dignidade humana e da equidade como fundamentos do processo de desenvolvimento), que é parte da “Diretriz 5” (valorização da pessoa humana como sujeito central do processo de desenvolvimento), que, enfim, se inclui no “Eixo Orientador II” (desenvolvimento e direitos humanos). Essa gongórica articulação foi capaz de, impressionantemente, desembocar na malsinada proposição. É um assombroso salto lógico.
A extravagante idéia poderia ser vista apenas como concessão feita aos bolsões políticos “radicais, porém sinceros”, para usar um chavão frequentemente repetido no governo Geisel. Não é assim, entretanto. Tramita no Congresso Nacional projeto de lei complementar, já aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, que pretende instituir o imposto sobre grandes fortunas, menoscabando o tamanho da carga tributária brasileira.
O imposto sobre as Grandes Fortunas foi concebido na França, no início da década de 80, tendo sua denominação alterada, ainda naquela década, para Imposto de Solidariedade sobre a Fortuna. Poucos países copiaram tal inovação tributária, alguns deles por pouco tempo. Foi nesse contexto que a Constituição de 88 acolheu a novidade, conquanto condicionando instituição do imposto à edição de uma lei complementar.
A experiência mostrou que aquele imposto encerra inúmeros vícios de concepção. Tem baixa capacidade arrecadatória – na França, por exemplo, não representa mais que 0,7% das receitas tributárias. Sua base de cálculo é confusa, em virtude das dificuldades em estabelecer o piso de incidência e das inúmeras exclusões da base de cálculo – a exemplo de obras de arte e bens de uso profissional. Constitui um notável desestímulo à poupança e um peculiar caso de pluritributação, pois tributa mais uma vez um patrimônio já tributado pelos impostos patrimoniais, para não falar da tributação da renda que lhe deu origem. De resto, revelou-se um infeliz incentivo à expatriação de capitais e domicílios fiscais.
Não se alegue que a instituição do imposto sobre grandes fortunas seria uma forma de ampliar os recursos para despesas sociais, porque esses gastos não demandam financiamento por um tipo especial de tributo. Ao contrário, a regra geral é não haver vinculação entre imposto e despesa.
Tampouco se pode pretender, por aquela via, elevar os níveis de progressividade tributária – tese, a propósito, em gradual desuso no mundo, como evidenciam os contínuos avanços, na Europa Oriental, da onda simplificadora centrada no flat tax. A progressividade, malgrado seu caráter polêmico, é matéria já alcançável por alíquotas do imposto de renda e dos impostos patrimoniais.
No projeto de lei complementar, a incidência ocorreria a partir de patrimônios superiores a R$ 2 milhões. A recente e perigosa explosão nos preços dos imóveis urbanos converteria parte significativa da classe média das grandes cidades brasileiras em contribuintes do imposto, mesmo que não tenha havido correspondente aumento de sua renda líquida. De mais a mais, como ficariam aqueles que optaram por construir fundos financeiros para custear sua aposentadoria, sobretudo quando se considera a hipótese plausível de colapso da previdência?
As alíquotas variariam de 1 a 5%. Na hipótese da alíquota máxima, não considerada a incidência dos impostos patrimoniais, sua incidência, no prazo de 20 anos, corresponderia à completa estatização do patrimônio tributado. Nem a mais perversa mentalidade estatizante lograria conceber algo com maior requinte de perversidade.
Definitivamente, inexiste qualquer vínculo conceitual entre direitos humanos e o excêntrico imposto sobre grandes fortunas – uma curiosidade francesa. A extensa fronteira entre os direitos humanos e a tributação se desdobra nas limitações constitucionais ao poder de tributar, na prevenção de discriminações e privilégios fiscais infundados, na observância do princípio da capacidade contributiva e, de modo afirmativo, na efetivação dos direitos do contribuinte e equalização de suas relações com o fisco. Isto, contudo, é outra história.
Fonte: “Blog do Noblat” – 5/07/10
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