A economia mundial atravessa uma era da ressaca. É uma fase de correção dos excessos cometidos nos primeiros anos do século XXI, marcados pelo crescimento global sincronizado em ritmo acelerado. O que se manifestou como o formidável estouro de uma bolha imobiliária, em 2007 e 2008, nas economias anglo-saxãs e em economias europeias como Irlanda e Espanha, era o início de uma fase de correção do excesso de crédito canalizado para o setor.
Da mesma forma, o que ocorre agora sob aparência de uma crise terminal do euro disparada pelo estouro das finanças da Grécia é, na verdade, uma manifestação do excesso de endividamento público, com crédito farto e barato após a criação da moeda continental. A diferença é que, em vez de destinado ao setor privado como o ocorrido nos países anglo-saxões, o grosso do crédito foi para o setor público de algumas economias mediterrâneas. Assim como se tornou insustentável o modelo “financista” de crescimento acelerado da economia americana, anuncia-se também a inviabilidade do paraíso social-democrata europeu.
Está condenado o modelo que mantém abusivos benefícios de aposentadorias precoces, assistência médica ilimitada e salários irrealistas do funcionalismo, financiados pelo endividamento em bola de neve do setor público. Nos dois lados do Atlântico, chegou a hora do acerto de contas.
A correção era inevitável. O crescimento da oferta global de crédito tinha um componente estrutural, de longo prazo, e outro componente cíclico, de natureza transitória. O excesso de poupança asiático é estrutural. Facilitou a farra do crédito, mas torna-se problema numa época marcada pela guerra mundial por empregos. As tensões comerciais entre as formigas asiáticas e as cigarras americanas começam a se acumular, afastando os antigos parceiros até então perfeitamente
O segundo componente da oferta global de crédito, que deveria atuar transitoriamente, foi a política monetária frouxa, quase irresponsável, do banco central americano, o Federal Reserve (Fed), com juros muito baixos por tempo longo demais. Apesar de sua natureza cíclica, ela está se tornando permanente, por um motivo histórico: o pavor dos americanos de mergulhar na Grande Depressão. Para evitar a reedição desse trauma, o Fed pratica a Grande Pedalada, na expressão criada por Paulo Rabello de Castro, que se reveza comigo nesta coluna. A ideia do Fed é inflar novamente os preços dos ativos em busca da solvência perdida. O importante é que subam os preços dos imóveis ante o valor da dívida contraída pelas famílias, que hipotecaram suas casas. E que subam também os preços das ações ante o valor das dívidas assumidas em aquisições, recuperando os empréstimos de um sistema financeiro que quebrou pelo endividamento excessivo.
Em relação à rota americana de escape da crise atual, o caminho europeu será fundamentalmente distinto. O pacote de salvamento de US$ 1 trilhão arquitetado pelo Banco Central Europeu (BCE) é só um passo no que se revelará um longo e penoso caminho. O mercado financeiro mostrou alívio, com a impressão de que a coisa está mais ou menos equacionada e que o BCE vai se mover como o Fed. Mas isso é apenas aparência, também por razões históricas.
Os alemães temem experimentar de novo a hiperinflação. Por isso, o DNA de seu banco central, o Bundesbank, era a austeridade monetária. Na reunificação do país após a queda do Muro de Berlim, o Bundesbank exigiu enorme esforço fiscal, com o governo adequando seus gastos à arrecadação, sem aliviar o sofrimento dos alemães. O mesmo será exigido dos gregos. Os europeus terão de enfrentar a crise com a austeridade monetária exigida pelos alemães e a disciplina fiscal imposta pela moeda única. O euro é a moeda continental, pouco sensível às necessidades de gregos e portugueses. Existe uma garantia de cooperação, pela exposição dos bancos europeus à dívida grega. Mas será inescapável a reestruturação das dívidas soberanas na Europa.
(“Época” – 15/05/2010)
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