*Por Hélio Zylbertajn, Bruno Oliva e Gabriel Neto
A sociedade brasileira atravessa um momento de grandes desafios e transformações em diferentes esferas. Com o mercado de trabalho não é diferente: a aprovação da reforma trabalhista, em 2017, pode ser entendida como uma resposta a conflitos e demandas que já se avolumavam sob a superfície das instituições e das relações do mercado de trabalho. Nesse contexto, uma das principais novidades da reforma envolveu o fortalecimento das negociações coletivas como mecanismo para ajustar e refinar os termos e condições de trabalho, garantindo a empregadores e trabalhadores maior autonomia e segurança jurídica para buscar soluções para conflitos e questões específicas de suas rotinas produtivas, sem comprometer direitos fundamentais.
De forma geral, pode-se assumir que reformas institucionais – entendidas também como revisões das “regras do jogo” podem ser úteis para acomodar e reduzir atritos, custos e incertezas que derivam do embate entre a dinâmica própria do mercado, de um lado, e a rigidez das instituições regulatórias, de outro.
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Um dos exemplos de descompasso entre mercado e instituições envolve as dificuldades envolvidas no reconhecimento e enquadramento formal de novas formas e modalidades de trabalho, especialmente aquelas que se popularizam na esteira de inovações e mudanças tecnológicas. Nos últimos anos, esse diagnóstico pode ser aplicado ao número crescente de indivíduos que tem buscado refúgio do desemprego e da insegurança no trabalho autônomo, firmando parcerias com as chamadas “plataformas digitais” – ferramentas que estão na base de modelos de negócio de empresas e startups nascidas em um ambiente digital, como é o caso da Uber, AirBnB, Loggi, iFood, Rappi entre outras.
Em comum, essas empresas são popularmente conhecidas pelo desenvolvimento de aplicativos móveis que facilitam a combinação entre demandantes e ofertantes de determinados serviços – como transporte de passageiros, hospedagem, realização de entregas de pacotes, encomendas e refeições – por meio do compartilhamento e uso eficiente de recursos e ativos ociosos economia.
Graças às vantagens oferecidas em relação a alternativas tradicionais e já estabelecidas no mercado (como maior agilidade, conveniência e transparência), as iniciativas classificadas sob o conceito de “economia do compartilhamento” têm sido responsáveis por transformar a realidade de diferentes setores da economia, oferecendo novas experiências para empresas e consumidores, além de oportunidades de trabalho e experiência profissional para uma parcela relevante da população dos grandes centros urbanos.
A despeito do potencial inovador e do poder disruptivo das plataformas, capazes de desarticular estruturas e práticas tradicionais em diferentes mercados, as novas modalidades de trabalho têm enfrentado resistência para serem reconhecidas e legitimadas, tanto por parte de entidades representativas e sindicatos, quanto por órgãos do poder público e Judiciário.
Diretriz baseada apenas na proteção do emprego deve dar lugar a uma que vise promoção e proteção do mercado de trabalho
Em boa medida, essa resistência pode ser atribuída à prevalência de uma concepção idealizada do “vínculo de emprego”, a partir da qual se construiu uma fronteira entre o “trabalho bom/desejável” e o que é comumente chamado de “trabalho precário”, caracterizado pela ausência de um ou mais dispositivos historicamente atrelados à carteira assinada e ao contrato de trabalho permanente (como seguro-desemprego, proteção contra demissões, limites rígidos às jornadas de trabalho, entre outros).
Pela generalização dessa lógica, qualquer arranjo ou modalidade de trabalho que se afastasse minimamente da “norma padrão do emprego” – como ocorre no caso do trabalho autônomo formal – acarretaria a sujeição automática do trabalhador a condições degradantes de remuneração, segurança e higiene, o que justificaria a recepção desses arranjos no rol de práticas ilícitas pela Justiça do Trabalho.
Hoje, entretanto, essas concepções merecem ser debatidas com base em dados e análises rigorosas, levando-se em conta não só a necessária adequação institucional às transformações tecnológicas e tendências de mercado, mas também o impacto esperado de políticas e posicionamentos orientados pela busca do bem-estar.
Se, por um lado, é evidente que ainda existem práticas e problemas que merecem ser devidamente combatidos e solucionados no mercado de trabalho (entre os quais se destaca o próprio quadro de elevado desemprego e informalidade), por outro, é fundamental que se considere criticamente o papel e o potencial das novas tecnologias em termos de geração de oportunidades de trabalho, crescimento profissional e exercício da autonomia para uma parcela importante da população.
Com base no reconhecimento crítico das transformações em curso no mercado de trabalho, abre-se espaço para que o debate se desenvolva sobre outras questões importantes, como formas de representação das novas categorias, negociações em termos de remuneração, treinamento e capacitação etc.
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Pelo exposto, entende-se como necessária a revisão da forma como são recepcionadas as novas modalidades e expressões do mercado de trabalho, substituindo-se uma diretriz pautada apenas pela proteção do emprego por iniciativas que tenham como objetivo a promoção e a proteção do mercado de trabalho. Na nova ótica, o conjunto de dispositivos instituídos historicamente para proteger o trabalhador contra a demissão são substituídos ou suplementados, progressivamente, por meios e garantias de qualificação e aprendizado contínuos da força de trabalho, proporcionando aos indivíduos maior mobilidade entre postos de trabalho e ocupações, bem como novos caminhos para realização profissional e ascendência na carreira.
No limiar da era do “Trabalho 4.0”, o arcabouço institucional e regulatório construído sobre a égide do contrato de trabalho e do emprego permanente se vê diante do desafio de se reinventar para contemplar e reconhecer o trabalho sem contrato e sem vínculo empregatício, oferecendo a esses indivíduos o acesso à formalização, ao pleno reconhecimento econômico e social.
Fonte: “Valor Econômico”, 29/04/2019