Mais de um mês depois de ter vencido as eleições, ainda não se conhece a proposta do governo Jair Bolsonaro para a medida mais importante no início de seu governo: a essencial e inadiável reforma da Previdência.
O presidente eleito declarou ontem apenas que deveria propor uma reforma fatiada, começando pelo estabelecimento de idade mínima para as aposentadorias. Não se sabe em que a ideia difere da atual proposta de emenda constitucional que tramita no Congresso.
Além da idade mínima, os dois outros pontos essenciais na reforma previdenciária – a regra de transição para o novo sistema e a unificação dos regimes público e privado – em tese ficariam para depois. Bolsonaro afirmou que não “podemos querer mudar o Brasil matando idoso”.
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A frase de efeito repete a mitologia consagrada pela esquerda para combater as propostas de reforma da Previdência durante o governo Michel Temer. Falsa, já que a reforma não altera as atuais aposentadorias e trata de uma transiçao gradual ao longo de 20 anos.
Ela reflete, na realidade, o principal desafio de Bolsonaro enfrentará a partir da posse: a dificuldade de articulação com o Congresso para aprovar sua agenda econômica, derivada da tensão entre dois fatos:
1. As principais mudanças aventadas pelo futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, – reformas previdenciária, tributária e desvinculação das despesas orçamentárias da União – dependem da aprovação de emendas constitucionais, em duas votações na Câmara e no Senado, com maioria de três quintos. Outras propostas, como privatizações e mudanças na lei trabalhista dependem de maioria simples.
2. Bolsonaro procurou montar seu governo sem ceder cargos e espaço a partidos no Congresso. Sua proposta é negociar projetos com “bancadas temáticas” e acabar com a política de distribuição de cargos em troca de apoio, o célebre “toma lá, dá cá”.
A reunião de ontem entre Bolsonaro e lideranças partidárias do MDB e do PRB é um prelúdio da crise política já contratada para o início do governo. Diante do microfone, os deputados podem até declarar que vivemos uma “nova política” e em “debater uma agenda programática”. Na realidade, levam ao governo exigências em troca de apoio.
Se não cargos de primeiro ou segundo escalão, que tipo de concessão Bolsonaro fará para obter os votos de que precisa? No primeiro governo petista, cujo ministério também foi montado sem abrir espaço para aliados no Parlamento, apenas com base em programa e ideologia, o meio encontrado para isso foi a corrupção. Os votos foram comprados, o resultado foi o escândalo do mensalão.
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Eleito para combater a corrupção e acabar com o “toma lá, da cá”, Bolsonaro se tornou, antes mesmo de tomar posse, refém do Congresso. A maior dificuldade nem estará na Câmara, onde é provável que, no início, conte com boa vontade das lideranças partidárias. Estará no Senado, onde uma maioria incontornável está com partidos de oposição e não-alinhados.
O primeiro desafio da nova legislatura, a eleição da presidência e mesa diretora das duas Casas, deixará clara a extensão da influência de Bolsonaro sobre o Parlamento. Não há “bancada temática” que torne favorável a condução dos projetos do governo. Se quiser fazê-los andar, será preciso negociar com partidos. Sem ceder espaço no governo e sem corrupção, como Bolsonaro pretende fazer isso?
Em alguns casos, será possível driblar o Congresso. A equipe econômica acaba de desistir da lei que autorizava novos leilões na área de exploração de petróleo do Pré-Sal, que prometem trazer até R$ 100 bilhões para aliviar as contas do ano que vem.
Com base num parecer do Tribunal de Contas da União (TCU), quer fazer os leilões por meio apenas de uma alteração no contrato entre a União e a Petrobras, sem precisar dividir recursos com estados e municípios para obter o voto de deputados e senadores.
A manobra poderá trazer algum alívio ao caixa no início do governo. É provavelmente por causa dela que Bolsonaro pode sair por aí falando em fatiar a reforma da Previdência. Mas usar o alívio para empurrá-la com a barriga é a pior estratégia – tanto do ponto de vista econômico (para garantir o equilíbrio futuro no Orçamento) quanto político.
A reforma fatiada dá aos parlamentares tantas oportunidades de exigir concessões do Executivo quantas votações houver. Não há boa vontade, nem “agenda programática”, nem “nova política” que seja suficiente para garantir todos os votos, em especial no Senado.
Bolsonaro começa a ter noção da correlação de forças que marcará o início de seu governo. As legiões de seguidores, os acólitos fanáticos, os ideólogos cheios de fumaça na cabeça de nada valem diante da realidade inescapável: na democracia brasileira, o Parlamento pode mais que o Executivo. O êxito de Bolsonaro estará nas mãos do Congresso.
Fonte: “G1”, 05/12/2018