Dentre os casos de inadequação de doutrinas estrangeiras importadas às condições da sociedade brasileira, um dos mais significativos é o relativo ao controle da constitucionalidade das leis. Trata-se de um mecanismo que tem como premissa a supremacia da Constituição sobre o ordenamento jurídico e sobre as atividades do Estado. Justificado em nome da segurança do direito e da compatibilidade dos atos do poder público com as normas constitucionais, esse controle tem por objetivo verificar se as leis que compõem o sistema jurídico são materialmente compatíveis com o que é previsto pela Constituição.
Essa preocupação surgiu no início do século 19, com a construção jurisprudencial da Corte Suprema americana, e cresceu no século 20, após a 2.ª Guerra. Hoje a Constituição é vista como uma norma estruturante, dotada de força vinculatória para os órgãos legislativos e governamentais. Assim, um ato jurídico só estará em conformidade com ela quando não violar formalmente o processo legislativo nem contrariar os parâmetros materiais fixados por normas e princípios constitucionais. A atribuição do controle desses atos e do processo legislativo aos tribunais é uma garantia para as liberdades públicas.
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O controle da constitucionalidade das leis se dá por dois modos. Um é o controle concentrado, atribuído a um órgão específico, como um tribunal constitucional ou uma corte suprema, que atua tanto como última instância judicial quanto como corte constitucional. O outro é o controle difuso, que permite aos juízes de qualquer braço especializado do Judiciário apreciar uma alegação de inconstitucionalidade de uma lei e declará-la inválida, decidindo pela sua não aplicação num caso concreto. No Brasil prevalece um sistema híbrido, difuso e concentrado ao mesmo tempo. É por causa dessa hibridez que o ativismo se espraiou nas instâncias inferiores do Judiciário e permitiu que o Supremo Tribunal Federal (STF) ampliasse seu campo de atuação, atritando-se com os demais Poderes.
Esse fenômeno tem sido exponenciado por vários fatores. Um é a inflação normativa. O número de leis no País pulou de 66,2 mil, em 1978, para 141,7 mil, em 2006, chegando a cerca de 180 mil hoje. A esse fator se incorporam dois outros: o alto número de normas constitucionais com conceitos indeterminados, por um lado, e o fato de a Justiça brasileira não dar valor aos precedentes, por outro. Isso sobrecarrega o sistema de controle difuso da constitucionalidade, tornando-o potencialmente gerador de insegurança jurídica. Entre outros motivos, porque as diferentes instâncias da Justiça têm mais de 17 mil juízes com graus distintos de especialização e formação teórica. Todos podem deixar de aplicar leis aos casos sub judice com base em sua percepção de justiça, convicções doutrinárias e visão de mundo, o que multiplica os riscos de decisões discrepantes sobre um mesmo tema. Mais de 17 mil magistrados promovendo o controle difuso de tantas leis já é por si algo complexo, o que abre caminho para o protagonismo e o ativismo judicial. Basta ver a resistência de alguns juízes do trabalho à reforma trabalhista, deixando de aplicar as novas regras sob a justificativa de que são inconstitucionais. No limite, portanto, o risco é de corrosão da unidade sistêmica e da identidade doutrinária do sistema legal.
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Neste cenário de incertezas, o desafio é identificar quais leis são de fato levadas a sério, o que permite aos advogados das partes acostumadas à litigância recorrer às mais variadas estratégias para tentar influir na formação do convencimento dos juízes, quando promovem o controle difuso, e dos ministros do STF, quando promovem o controle concentrado. Em tese, as disputas judiciais devem ser processualmente igualitárias entre as partes. Na prática, porém, os litigantes habituais – como sindicatos e entidades de servidores acostumadas a recorrer aos tribunais para obter vantagens corporativas – são hábeis no enfrentamento desse desafio. A ação que discute a inconstitucionalidade do auxílio-moradia de promotores e juízes é exemplo disso. Como lembra o jurista americano Marc Galanter em seu estudo sobre o desempenho dos litigantes habituais e litigantes eventuais nos tribunais, os advogados dessas corporações sabem explorar brechas da Constituição, desenvolvem estratagemas para a construção de uma jurisprudência constitucional favorável aos seus clientes e têm pronto acesso a especialistas. “Quem tem mais sai na frente”, diz o autor (Why the “haves” come out ahead: speculations on the limits of legal change, in Law & Society Review, 1974). Com isso, as corporações com voz, poder de pressão e expertise judicial conseguem valer-se do sistema de controle da constitucionalidade, notadamente o difuso, para preservar interesses e até privilégios.
O impacto na governabilidade é só um dos lados do problema da hibridez do sistema de controle da constitucionalidade. Associado à nossa herança cultural e burocrática, o outro lado está em determinadas implicações do controle difuso. Quando utilizado em larga escala por litigantes habituais na defesa de vantagens corporativas, ele propicia ativismo a quem jamais teve voto, como também aprofunda deformações patrimonialistas do Estado. Por isso, se houver revisão constitucional como propõem alguns presidenciáveis, será uma oportunidade para valorizar o controle concentrado da constitucionalidade das leis e reavaliar o controle difuso, com o objetivo de afastar riscos de vícios patrimonialistas e manobras de litigantes habituais. Evidentemente, o STF não é imune a esses riscos. Mas a visibilidade dos julgamentos de interesses eticamente discutíveis dos litigantes habituais, exponenciada pela possibilidade de realização de audiências públicas, permite que a sociedade se mobilize para pressionar a corte a barrá-los, o que não acontece no controle difuso.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 07/08/2018