O artigo 170 da CF/88 estabeleceu a livre-iniciativa como fundamento da ordem econômica brasileira, elegendo, por imperativo lógico, a livre concorrência (inciso IV) como um dos seus vetores normativos de concretização. Quando se esperava a máxima efetividade constitucional, no tocante às empresas estrangeiras, a liberdade de iniciativa ainda é um sonho distante, prejudicando-se, por consequência, a potencialização concorrencial e seus benfazejos efeitos, tanto na política de preços ao consumidor, como no aprimoramento das técnicas produtivas nacionais. Em síntese, mesmo após mais de 30 anos democratização, ainda temos resquícios autoritários de homenagem à burocracia estatal e suas perigosas repercussões sobre reservas de mercado, escolhidas a dedo.
O exame da legalidade positiva não deixa mentir. Nos exatos termos do artigo 1134 do Código Civil, a “sociedade estrangeira, qualquer que seja o seu objeto, não pode, sem autorização do Poder Executivo, funcionar no País, ainda que por estabelecimentos subordinados, podendo, todavia, ressalvados os casos expressos em lei, ser acionista de sociedade anônima brasileira”. Insatisfeito, o legislador foi além, prevendo que “é facultado ao Poder Executivo, para conceder a autorização, estabelecer condições convenientes à defesa dos interesses nacionais” (art. 1135/CC).
Como se vê, além de subjugar a empresa estrangeira à autorização executiva, poder-se-á impor condicionantes, sob o sinuoso rótulo do interesse nacional, que, como cediço, faz o impensável tornar-se possível. Atualmente, por força do Decreto n. 9787/2019, tem-se competência delegada ao Ministro de Estado da Economia para decidir e praticar medidas de autorização e funcionamento de sociedade estrangeira, incluídos aí os atos de aprovação ou modificação do contrato e estatuto social, nacionalização e a própria cassação da autorização administrativa.
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Ora, salta aos olhos que o art. 1134/CC ao utilizar a expressão “qualquer que seja o seu objeto” fulmina o núcleo normativo da livre-iniciativa constitucional (art. 170/CF), impondo injustificável situação de desvantagem às eventuais empresas estrangeiras interessadas em atuar no mercado brasileiro. Em tempo, a condicionante legal soa ainda mais irrazoável em uma quadra econômica de competição global, entre os players do mercado ágeis e dinâmicos, que, ao invés de piquetes de confinamento legislativo, exigem abertura, flexibilidade e permanente adaptabilidade aos frenéticos fluxos de uma economia de viés tecnológico.
Registra-se, por oportuno, que, em setores sensíveis ou estratégicos, como o bélico e o energético, nada mais justo e coerente do que a prerrogativa do governo brasileiro em estabelecer ponderadas balizas normativas à luz do motivado interesse nacional. Todavia, impor prévia autorização genérica à iniciativa estrangeira, além de inconstitucionalidade palpável, traduz manifesta confusão entre ideologia e normatividade positiva, como se o capital externo fosse um inimigo do desenvolvimento nacional. Isso sem contar o aspecto da institucionalidade estrutural republicana, na qual, sabidamente, toda concentração burocrática de poder – ainda mais de fins econômicos – gera um inercial crescimento das margens de corrupção oficial.
Em recente voto vencedor no egrégio STF, o eminente Ministro Barroso bem ponderou que a “Constituição de 1988, embora tenha sido uma reação veemente ao modelo político do regime militar, não confrontou o modelo de atuação direta do Estado no domínio econômico, pelo controle de numerosas empresas. Além disso, foi mantido o modelo protecionista que impunha diversas restrições à participação de empresas e capitais estrangeiros na economia nacional”, expressando, com rigor, que “é preciso superar o preconceito e a desconfiança que ainda existem no Brasil em relação ao empreendedorismo e à iniciativa privada” (Tribunal Pleno, DJe 05.09.2019).
Por tudo, as lógicas econômicas da tecnologia são dinâmicas, fluídas, imateriais e geneticamente transnacionais. Logo, a imposição de barreiras físicas, legislativas ou virtuais ao livre fluxo de inteligência, cultura e capital humano significará atraso, pobreza e desigualdade social na curva evolutiva das nações. Sim, o bom regramento das práticas, negócios e as novas relações de trabalho constitui desafio premente nas democracias contemporâneas; todavia, as pautas de fechamento normativo e consequente burocratização estatal são definitivamente erradas, contraproducentes e vencidas.
Temos, no ar, em ambiente ‘cloud’, uma grande janela de oportunidade para melhor inserir o Brasil nos macrojogo geopolíticos globais. Se fizermos o certo, poderemos ter a grandeza que sempre desejamos a nosso país; no entanto, se os velhos erros triunfarem, condenaremos a sociedade brasileira a um grave declínio econômico com efeitos civilizatórios imprevisíveis. Mais do que apenas sonhar, é hora de agirmos rumo a uma legalidade constitucional vocacionada ao crescimento, liberdade e desenvolvimento nacional.
Fonte: “Valor Econômico”, 6/3/2020