No final de 1964 foi promulgada a lei 4.595, que criou o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central. O mais importante comando desta lei determina que o CMN e o BC devem atuar para “regular o valor interno da moeda, para tanto prevenindo ou corrigindo surtos inflacionários e deflacionários de origem interna ou externa”.
Por 30 anos essa boa missão não foi cumprida, vítima de recorrentes tentações políticas de curto prazo.
No final da década de 1980, período caótico de inflação, planos de estabilização fracassados, hiperinflação, recessão duradoura e moratória, rabisquei um texto com o título “moeda e o direito ao autoflagelo”.
A questão era bem básica: ao contrário da esmagadora maioria dos bancos centrais do mundo, o BC nunca fora capaz de cuidar do valor da nossa moeda, que sempre derretera como se fosse gelo, especialmente no bolso dos mais pobres. Ter uma moeda nacional era como ter o direito de se autoflagelar. Éramos viciados nessa prática.
Escrevendo antes do início do governo Collor, pensei desesperado que, caso os esforços do novo governo no combate à inflação fracassassem, o melhor seria adotar o dólar. Isso mesmo, teríamos as verdinhas circulando por toda parte, uma versão mais radical do sistema de caixa de conversão mais tarde adotado (e abandonado) pela Argentina. Por consequência abriríamos mão da política monetária, o que em condições mais normais faria muita falta.
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Bem, engavetei o texto, o Plano Collor foi um fiasco e poucos anos depois um plano melhor finalmente deu certo, o Real, reforçado em 1999 pela adoção do tripé macroeconômico: metas para a inflação, taxa de câmbio flexível (eliminando outro autoflagelo histórico) e disciplina fiscal.
Nos anos seguintes, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a reestruturação das dívidas estaduais pareciam ter institucionalizado a perna fiscal do tripé. Faltava reforçar a 4.595 mas, ainda assim, o sistema de metas para a inflação segue dando certo após 20 anos, em boa medida porque o povo gostou de inflação baixa, hoje um claro bem público. Esse sistema foi duramente testado em diversas ocasiões, e resiste até hoje, a despeito inclusive do enorme colapso do alicerce fiscal ocorrido a partir de 2014.
Mas até quando?
Notem bem onde fomos parar: temos em vigor a lei 4.595, que não foi cumprida por 30 anos, embora ultimamente venha sendo. E, no lado fiscal, a grande conquista que foi a LRF não impediu
relevante irresponsabilidade.
O que fazer?
Em primeiro lugar, faz sentido revisar a lei 4.595, nem tanto para modernizar os objetivos do BC, mas principalmente para formalizar em lei a ideia de que a estabilidade da moeda precisa ser protegida contra conveniências políticas de ocasião. Para tal, cabe estabelecer mandatos fixos e robustos para a diretoria do BC (a chamada independência), como já fazem praticamente todos os principais países genuinamente democráticos do mundo.
Em segundo lugar, urgente e muito mais grave é o estado das nossas finanças públicas, tanto federais quanto estaduais. Aqui cabe uma rigorosa avaliação das causas do colapso recente, que ocorreu estando em pleno vigor a LRF e os contratos entre os estados e o governo federal, todos sob a fiscalização do Congresso e dos tribunais de contas da União e dos estados, e debaixo dos olhos do Ministério Público.
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Esse colapso e suas repercussões recessivas e regressivas vêm nos custando muito caro. Cabe apurar se ocorreu em função da existência de brechas legais, se foi crime mesmo, ou ambos. A partir desta avaliação será possível a construção de um arcabouço fiscal robusto que, além de garantir a estabilidade econômica, permitirá o pleno exercício de nossa democracia.
Como bem sabemos, leis nem sempre garantem sucesso. É recomendável portanto uma certa dose de humildade no repensar. Mas temos que seguir tentando.
Fonte: “Folha de S. Paulo”