Berthier Ribeiro-Neto, cientista e diretor de engenharia do Google para a América Latina, fala sobre o cenário de inovação no Brasil
Nas últimas décadas, emergiu em países desenvolvidos o conceito de universidade empreendedora. Instituições que, além da produção de conhecimento e da formação de profissionais, passaram a contribuir com a gestação e o desenvolvimento de empresas inovadoras com potencial de causar grande impacto econômico, as chamadas startups. O fenômeno, consolidado nas universidades americanas, enfrentou alguma resistência no Brasil. As instituições de ensino brasileiras ainda falham nesse quesito, como mostra um estudo da Endeavor e do Sebrae publicado recentemente por “Época”. Não faz muito tempo, professores universitários que se envolviam de alguma forma com a iniciativa privada eram acusados de vender a alma ao capitalismo. Por sorte, o Brasil vem evoluindo. No início do ano, ocorreu a aprovação do Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação, que, entre outros aspectos, permite que acadêmicos transformem seu conhecimento em empresas que tenham impacto direto na sociedade.
Um dos nomes que melhor representam os frutos que a ponte entre academia e o mercado pode render é Berthier Ribeiro-Neto, doutor em ciências da computação e professor da mesma área na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ribeiro-Neto é uma sumidade internacional em sistemas de recuperação de informação, como buscas na internet. Sua empresa, a Akwan, que desenvolveu um buscador on-line, foi comprada pelo Google em 2005. Ele assumiu o cargo de diretor de engenheria e chefe do laboratório de pesquisas do Google em Belo Horizonte, um dos mais importantes da operação global da empresa.
Além de um dos brasileiros mais reconhecidos no Vale do Silício, Ribeiro-Neto mantém uma visão bastante clara sobre qual deve ser o papel do Estado e das universidades em relação ao incentivo à inovação. Um dos pontos que mais valoriza é a formação de estudantes e pesquisadores brasileiros em instituições estrangeiras. Na edição de 2016 do Google Research Awards for Latin America, que premia projetos de pesquisa de professores, todos os contemplados brasileiros tinham doutorado no exterior. Em entrevista a “Época”, ele faz críticas a programas recentes lançados no Brasil, como o Ciência sem Fronteiras, e sugere alguns caminhos que o Brasil deveria estar seguindo para tornar-se uma nação mais inovadora.
Época – Como o senhor avalia o programa Ciência sem Fronteiras, uma das principais bandeiras do governo da ex-presidente Dilma Rousseff e que, agora, passará por uma reformulação (como anunciado pelo governo federal em 21 de outubro)?
Berthier Ribeiro-Neto – O histórico dos programas que oferecem bolsas de estudos no exterior mostra que, para dar certo, é preciso começar pequeno, avaliar os resultados e expandir aos poucos. Foi assim com os programas de mestrado e doutorado financiados há décadas pelo Ministério da Educação por meio da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] e do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Minha principal crítica ao Ciência sem Fronteiras é justamente a magnitude. Por que você começa um programa numa escala tão grande? Por que não rodar o primeiro ano com uma seleção menor de vagas, observar os resultados e aprimorá-lo nas próximas edições? Nenhum programa de educação em nível superior dará frutos num horizonte de curto prazo. É uma conta simples: uma graduação leva cinco anos para a conclusão. Se a pessoa está buscando por um doutorado, isso pode levar mais de dez anos. O que precisamos é de um programa que fique maduro em quatro, cinco anos, mas que só tenha a expectativa de render frutos daqui a 20. É assim que países que despontaram com políticas similares fizeram. A meu ver, a pressa na execução foi equivocada.
Época – Alguns dos contemplados com as bolsas reclamaram da qualidade dos cursos oferecidos no exterior…
Ribeiro-Neto – Uma aluna da UFMG com quem conversei ficou estupefata ao perceber que o curso aqui era muito melhor que o da universidade para onde ela foi enviada. Outros alunos já me relataram a mesma experiência. É sinal de que a instituição estrangeira não foi bem escolhida. Se o propósito é mandar o estudante para ter uma experiência no exterior e nada mais, você cria um programa de intercâmbio. Coloca os jovens para passar alguns meses com o objetivo de aprender uma nova língua. Se é para fazer algo que realmente vai trazer mais conhecimento acadêmico para o Brasil, por que não expandir os programas existentes?
Época – Qual seria a melhor forma de fazer isso?
Ribeiro-Neto – O Brasil tem um programa grande e consolidado da Capes e do CNPq para apoiar a formação no exterior. Se você conseguir passar um doutorado numa universidade de primeira linha no mundo, o contribuinte paga. Tudo passando pela aprovação de um comitê formado por acadêmicos com experiência na concessão de bolsas. Dos brasileiros que receberam o prêmio do Google neste ano, todos são professores com doutorado no exterior. A primeira bolsa de doutorado oferecida pelo governo brasileiro é do final dos anos 1960. Mostra que se executarmos um programa consistente, com boa direção e investimento ao longo dos anos, colhemos bons resultados.
Época – O governo de Michel Temer prometeu que vai reformular o Ciência sem Fronteiras. Tem uma visão mais favorável à iniciativa privada. Ao mesmo tempo, anunciou que cortaria parte da verba destinada ao CNPq. Qual é sua avaliação sobre as diretrizes do novo governo e dos ministérios da Ciência e Tecnologia e da Educação?
Ribeiro-Neto – Qualquer agenda para o Brasil precisa ter diretrizes claras que apoiem o investimento no ecossistema de inovação, na formação de cientistas, na condução de políticas que promovam mais diversidade e no fomento do empreendedorismo tecnológico do país. No início de setembro, o presidente do Conselho Nacional de Pesquisa, Hernan Chaimovich, apresentou na sede da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em São Paulo, um novo modelo para avaliação de projetos de ciência, tecnologia e inovação. Nesse novo modelo, o foco está no impacto que o trabalho de pesquisa, de geração de conhecimento, tem na sociedade. É um bom sinal, é um bom começo. Por outro lado, recebemos a notícia de cortes de verbas no CNPq com possível impacto no sistema vigente de bolsas de pesquisa. Há que entender que vivemos um momento econômico muito duro com dois anos seguidos de recessão econômica profunda. Ainda assim, é preciso ter claro onde estão as prioridades. Cortar verbas do sistema de inovação compromete o desenvolvimento da “economia digital” e envia uma mensagem de que inovação não é missão crítica.
Época – Fora as bolsas para universidades estrangeiras de qualidade, o que falta para o Brasil tornar-se um país mais inovador, com uma produção científica mais relevante?
Ribeiro-Neto – A gente precisa de um programa completo para a educação básica que dure pelo menos duas décadas. O Brasil tem uma herança histórica. Em 1830, havia 3 milhões de pessoas no país. Desse total, 2 milhões eram escravos, sem acesso a estudo. A herança permanece ainda hoje. Só interromperemos esse ciclo ao educar uma geração inteira. Foi isso que ocorreu em países que deram grandes saltos econômicos e de inovação ao longo das últimas décadas. Japão, Cingapura, Taiwan, Coreia do Sul tinham grande parte de sua população não educada no passado. Fizeram um esforço monumental durante 15 ou 20 anos e conseguiram uma geração bem formada. O Brasil precisa fazer isso para romper esse ciclo.
Época – Além de educação, esses países que o senhor citou também investiram em políticas que facilitaram a integração entre a universidade e o mercado, relação vista no passado como “promíscua” por parte da academia no Brasil. Já evoluímos?
Ribeiro-Neto – Boa parte do conhecimento que existe no Brasil está concentrada nas universidades, especialmente por professores que foram estudar fora. Ou seja, foi o contribuinte brasileiro que financiou a incorporação do conhecimento. Mas existem outras formas de transferir conhecimento. Formar alguém na universidade, tornar alguém um doutor, é um processo que pode levar mais de uma década. A forma mais direta e rápida é a integração da universidade com o mercado por meio de consultorias e da criação de empresas. Por anos, existiu essa tendência do acadêmico brasileiro de ficar dentro dos muros da universidade. Mas, se ele olhar para fora, verá que ele pode gerar um impacto na sociedade muito maior indo para o mercado. Tenho uma visão otimista. A cena melhorou muito nos últimos 15 anos no Brasil. O Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação, aprovado ainda no governo Dilma, no início de 2016, deu um encaminhamento para isso. Ele permite que o professor universitário tenha participação acionária em negócios e continue trabalhando na universidade pública. Eu fiz meu doutorado nos Estados Unidos, voltei e não podia criar uma empresa se quisesse dar aulas. Precisei tirei várias licenças.
Época – Que universidade seria um bom exemplo para as brasileiras se espelhar?
Ribeiro-Neto – Quando o Google chegou ao Brasil, ele comprou a Akwan, uma empresa de tecnologia que já estava fora dos muros de UFMG, mas que havia nascido dentro dela. É preciso que haja um trabalho de flexibilização desse ir e vir da universidade e mercado. Se você for para uma universidade como Stanford, no Vale do Silício, o ir e vir é muito mais constante. Muitos engenheiros de grandes empresas de tecnologia dão cursos nas faculdades de lá. Eles enxergam uma necessidade no mercado a partir de seu trabalho e formam turmas de gente disposta a encontrar soluções para essas necessidades. Se houver interesse de alunos, esse funcionário de uma empresa privada pode dar o curso. Não há troca de dinheiro entre o professor e a universidade. O engenheiro é reconhecido como membro da comunidade acadêmica, e o aluno é exposto ao conhecimento de um profissional que está na fronteira [lidando com o que há de mais avançado] daquela área. O resultado prático para os Estados Unidos está nos números: o valor de mercado das empresas que nasceram dentro de Stanford nas últimas décadas excede US$ 1 trilhão.
Época – Quais são os principais polos de inovação do Brasil fora das universidades?
Ribeiro-Neto – Um deles fica em Belo Horizonte e é conhecido como San Pedro Valley, um movimento de empresas de garagem, similar ao que ocorreu nos Estados Unidos com a HP e a Apple. É um conglomerado de cerca de 200 empresas de tecnologia de diferentes portes que nasceram de forma espontânea. A própria chegada do Google aconteceu na esteira desse movimento, o que acabou ajudando a consolidar o bairro de São Pedro. Hoje, você tem empresas de 50 e até 80 funcionários que estão dobrando de tamanho no meio de um país em crise. Isso sem nenhuma participação de dinheiro público. Outro polo de destaque é o Porto Digital, no Recife, que é o exemplo de um empreendimento de base tecnológica nascido dentro do governo. É uma cooperação estreita entre a Universidade Federal de Pernambuco, a prefeitura do Recife e o estado. É um exemplo de como fazer a partir do governo. Também colocaria como exemplo notável a cena que existe em Florianópolis. Nascida de um empreendimento privado há mais de 15 anos. É uma realidade. Os relatos que temos é que é a região que está se acelerando mais rapidamente, especialmente pela qualidade de vida de Florianópolis. Eles acabam atraindo gente muito qualificada de São Paulo, executivos de consultorias, por exemplo. As pessoas vivem em São Paulo por um tempo e querem mudar de ares, para um ambiente melhor. Em Florianópolis, esse sujeito chega e encontra uma rede de contatos já formada.
Época – O Google tem investido em inovação na área de saúde e muitos dos projetos que foram premiados neste ano trabalham com inteligência artificial para melhoria de diagnósticos e tratamentos. É a próxima grande aposta do Google?
Ribeiro-Neto – Essa concentração na área de saúde não fomos nós que estimulamos. Foi algo que observamos e então resolvemos apoiar. Temos entre os premiados deste ano projetos consistentes para diagnóstico de demência e diabetes. Não que não existam métodos para diagnosticar demência ou medir o nível de insulina. Mas eles são caros. Quando você pensa numa região como a América Latina, com 500 milhões de habitantes, você precisa de métodos baratos, que sejam acessíveis à maior parte da população. Não adianta a gente ter um teste que custa R$ 2 mil ou R$ 3 mil porque você deixará boa parte da população de fora.
Época – Quais outras áreas da tecnologia que foram reconhecidas como mais importantes pelo Google?
Ribeiro-Neto – Premiamos muitos projetos que tratam de inteligência artificial e de machine learning [aprendizagem de máquina]. São tecnologias que tiveram uma ascensão incrível nos últimos cinco anos, especialmente em relação a sistema preditivo. Pegue o exemplo dos exames para identificar câncer de mama. Você tem 1 milhão de imagens de tumores identificados com os devidos diagnósticos em computadores de hospitais e clínicas espalhados por todo o mundo. Agora, temos um algoritmo que aprende a identificar sinais de tumores com essas imagens. A gente diz que o computador adquire consciência. Mas, na verdade, o que ele faz é registrar padrões que a partir de milhões de comparações tornam o sistema muito mais preciso e eficiente. É como criar uma rede neural de múltiplas camadas. O que temos observado é que, muitas vezes, a capacidade preditiva do computador é melhor que a dos humanos. O sistema realiza o exame e encaminha para o médico especialista concluir o diagnóstico.
Época – Na tecnologia dos carros autônomos, outro investimento do Google, fala-se que tirar o fator humano aumenta a eficiência do sistema e diminui o risco de acidentes. O mesmo se aplicaria ao caso dos médicos?
Ribeiro-Neto – Eu não entregaria minha saúde na mão de um algoritmo! São disciplinas diferentes. Quando você tira o ser humano do carro, você tira uma série de fatores que costumam causar acidentes: cansaço, bebida, direção agressiva. E pouca gente gosta de dirigir rotineiramente. Se pudesse ir para o trabalho assistindo a uma série, lendo um livro ou respondendo a e-mails, você iria preferir a ficar prestando atenção no trânsito. Já no caso do médico, são muitos fatores subjetivos, porque envolve decisão humana. Há casos de câncer, por exemplo, que o paciente vai a médicos diferentes e cada um recomenda um tipo de tratamento. Outros, se a idade do paciente for avançada, nem cogitam uma operação, já que o paciente tende a morrer antes de causas naturais. Então ainda não é a praia dos algoritmos.
Fonte: “Época”, 29 de outubro de 2016.
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