Não foi na semana passada que a Venezuela deixou de ser uma democracia. Nos três principais levantamentos globais — realizados por Freedom House, Economist Intelligence Unit (EIU) e Polity Project —, o país há anos é classificado como não democrático, não livre ou como híbrido de democracia e autocracia. Os indicadores venezuelanos de liberdade estão há mais de uma década entre os que mais recuam no planeta. A eleição fajuta da Assembleia Constituinte pode ter dado o álibi de que diplomatas precisavam para chamar Nicolás Maduro de ditador. Mas a erosão da democracia por lá é antiga. Há passos inequívocos rumo à autocracia desde pelo menos 2004: restrições à imprensa livre, aparelhamento do Judiciário, prisões arbitrárias de adversários, asfixiamento da oposição e adoção, em 2013, de uma “lei habilitante”, permitindo a Maduro governar por decreto, à revelia do Parlamento, a pretexto de manter a “segurança nacional”. Pretexto igual foi usado oito décadas antes por Adolf Hitler para impor lei de nome idêntico — em alemão, Ermächtigungsgesetz — depois do incêndio no Reichstag, em fevereiro de 1933. Sob a pretensa justificativa de manter a ordem numa situação de emergência, Hitler consolidou seu regime tirânico e genocida num plebiscito também fajuto. A Venezuela não é a Alemanha de Hitler, e o bolivarianismo chavista não é o nazismo hitlerista. Ambos os exemplos demonstram, porém, que a democracia nem sempre acaba de repente, num golpe de Estado. O mais frequente é uma erosão gradual e paulatina, sob a fachada de eleições manipuladas, até a liberdade se esvair por completo.
Dois anos atrás, o cientista político Larry Diamond cunhou uma expressão feliz para classificar o recuo da democracia no planeta: “recessão democrática”. Entre 2006 e 2016, a proporção de regimes livres no mundo caiu de 47% (90 em 193) para 45% (87 em 195), de acordo com a Freedom House. No mesmo período, o Índice de Democracia, calculado pela EIU, recuou em 81 dos 167 países estudados. Pelos critérios da EIU, há apenas 19 democracias verdadeiras — e mesmo os Estados Unidos, com a eleição de Donald Trump, passaram a integrar o grupo de 57 países a que o Brasil pertence, as “democracias imperfeitas”. “A eleição de Trump trouxe uma urgência renovada a questões sobre a pretensa estabilidade das democracias liberais consolidadas”, escrevem os cientistas políticos Roberto Foa e Yascha Mounk num artigo publicado em janeiro no Journal of Democracy (há uma versão em português no site da Fundação Fernando Henrique Cardoso). “Deveria o desencantamento crescente nos Estados Unidos ser visto como sinal de alerta de que a democracia pode soçobrar mesmo em países onde é historicamente estável?”
O artigo de Foa e Mounk define um fenômeno que chamam de “desconsolidação”, a transição gradual de regimes livres para a tirania, verificada em países como Venezuela, Hungria, Polônia ou Filipinas. “Já é hora de pensar nas circunstâncias sob as quais democracias consolidadas podem falhar — e ficar de olho nos sinais de que uma transformação sistêmica significativa pode estar a caminho”, escrevem. Um desses sinais é o apoio decrescente à democracia na população, sobretudo entre os jovens. Outros são reunidos num livreto lançado neste ano pelo historiador Timothy Snyder, autor de obras essenciais sobre as tiranias nazista e soviética. “A história nos ajuda a identificar padrões e a fazer julgamentos”, escreve Snyder em Sobre a tirania. Sua análise, apoiada no discurso populista e nas pretensões atribuídas a Trump, se aplica até com mais propriedade à Venezuela de Maduro, à Grécia do Syriza, às Filipinas de Rodrigo Duterte, à Hungria de Viktor Orbán, à Polônia de Jarosław Kaczyński — ou a qualquer outro candidato a ditador.
Snyder divide suas recomendações em 20 dicas para quem não tem tempo ou paciência para estudar o assunto. Vão do apoio às instituições e da desconfiança de grupos paramilitares ao apreço pela linguagem, por reuniões cara a cara e pelos livros, em detrimento das redes sociais. Ele aponta dois riscos comuns a todo projeto de tirania. Primeiro, ameaças à imprensa livre. A democracia, diz Snyder, depende da lei; a lei, da confiança na Justiça; e a confiança, da verdade comum sobre os fatos. Quando notícias reais são classificadas como “fake news”, quando o que incomoda poderosos é contestado por “fatos alternativos”, quando a verdade objetiva é trocada por mitos gloriosos, a essência da democracia está sob ameaça. O segundo risco são os momentos em que a população, diante de catástrofes como o incêndio no Reichstag, uma guerra fabricada ou um ataque terrorista, é seduzida pelo discurso da “emergência”, confere poderes excepcionais aos tiranos e troca “liberdade real por segurança falsa”. É no momento de maior crise que devemos estar mais alertas. Nos Estados Unidos, na Venezuela — ou no Brasil.
Fonte: “Época”, 06/08/2017.
Excelente artigo.