A dificuldade de abandono da taxa de câmbio fixa pela Grécia é muito maior que a enfrentada pela Argentina
Embora a história costume se repetir como farsa, desta vez a dança pode ser a metáfora mais apropriada para mais uma das repetições com que Clio nos brinda.
Há, nos desenvolvimentos recentes na Grécia, padrões por demais conhecidos para quem acompanhou de perto a crise argentina, sugerindo que o fim da tragédia grega, como já antecipava Manuel Bandeira, irá terminar num tango argentino.
O tema comum a ambas as crises é a dificuldade do ajuste sob taxas fixas de câmbio potencializada por problemas fiscais.
Diga-se a favor da Argentina que, mesmo vivendo um período de baixo crescimento nos anos que antecederam sua crise, as contas fiscais nunca chegaram ao estado de deterioração das da Grécia. Pelo contrário, o governo argentino lutou com a costumeira garra para melhorar seu desempenho fiscal, chegando a cortar os salários do funcionalismo e, perto do fim, até as aposentadorias.
Por muito menos, outros países, Grécia inclusive, já teriam iniciado a mãe de todas as revoltas.
Dito isso, sabia-se desde sempre que, como praticamente toda dívida pública argentina era denominada em moeda estrangeira, o fim da convertibilidad levaria necessariamente à reestruturação da dívida (calote, para os íntimos).
Por outro lado, a forte queda de preços de commodities entre 1997 e 2002, associada à desvalorização do real em 1999, requeria uma desvalorização real do peso que, sob câmbio fixo, só podia ser atingida pela deflação doméstica.
Dada a rigidez para baixo de preços e salários, esse mecanismo de ajuste desembocou numa recessão duradoura, reduzindo dramaticamente a receita tributária e colocando o país numa armadilha: mantida a convertibilidad, a recessão continuaria, com consequências desagradáveis para as contas públicas; por outro lado, a desvalorização levaria -como de fato levou- à reestruturação.
Esse mesmo dilema se repete na Grécia, agravado, porém, por dois desenvolvimentos. Em primeiro lugar, o desempenho fiscal heleno é muito pior do que o argentino, em parte porque a recessão foi mais profunda, em parte porque o governo grego jamais mostrou a mesma disposição para corrigir o problema.
Não bastasse isso, a dificuldade de abandono da taxa de câmbio fixa no caso helênico é muito maior do que a enfrentada pelos nossos vizinhos (e os obstáculos à época já eram formidáveis).
Concretamente, a Grécia teria que abandonar o euro, fenômeno inédito desde a criação da moeda comum e muito raro na história moderna. As dificuldades operacionais dessa mudança são quase intransponíveis e levariam, é claro, ao default, incluindo provavelmente a troca da moeda na qual a dívida é denominada.
À luz dessas considerações, parece ser inevitável alguma forma de reestruturação, embora não esteja claro se esta alcançaria também o financiamento oferecido pela União Europeia e pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) em maio do ano passado. Contudo, se isso é verdade, por que postergar o processo?
A bem da verdade, o principal (se não único) motivo para evitar agora o calote é que os gastos não financeiros do governo grego ainda superam a arrecadação (há deficit primário), ou seja, mesmo que a Grécia interrompesse o serviço de sua dívida, ainda -em contraste com a Argentina- não teria sequer como pagar suas contas. Nesse caso, o ajuste fiscal involuntário seria ainda mais drástico do que a versão hoje em discussão.
Daí as tentativas de postergação. Primeiro o pacote de ajuda, agora propostas para um troca voluntária (ou nem tanto) dos títulos a vencer por outros de prazo algo mais longo, muito similares ao megacanje que ocorreu na Argentina pouco antes do colapso (conforme me lembrou Mario Torós, a quem agradeço). De forma similar, não parecem suficientes para evitar o default.
A análise das consequências de um calote grego fica para o próximo artigo. Por ora, basta saber onde terminará a evolução do último tango em Atenas.
Fonte: Folha de S. Paulo, 22/06/2011
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