Há anos que a opinião pública critica a ineficiência do Estado brasileiro, mostrando claros problemas de eficácia, de desvio de finalidade e de mau uso dos recursos, sem falar nos inúmeros desvios. O Estado brasileiro tem diversos problemas financeiros, gerenciais, políticos, sociais e morais, todos da maior importância. Entretanto, quando surge o debate sobre quais soluções deveriam ser implementadas, inevitavelmente, as grandes reformas trabalhista, tributária, política, do judiciário e da previdência são citadas como únicos exemplos de potenciais remédios para esses problemas.
Atualmente, é difícil haver dúvidas quanto a importância dessas reformas. Na maioria das vezes, o que há é a falta de motivação de determinados grupos de interesse em discutir e aprovar as referidas reformas, em razão do receio que esses grupos têm de perderem poder, privilégios ou recursos.
O tema das grandes reformas está tão latente e explorado que, nesse artigo, não será abordado. O objetivo principal desse artigo é trazer novas idéias que, se implementadas, podem ter um efeito transversal muito positivo em todos os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), bem como nos três entes federativos (União, Estados e Municípios). São soluções baseadas em princípios e valores, portanto, podem ser aplicadas indefinidamente.
Evidentemente, ao contrário do que muitas pessoas alegam, o problema do Estado brasileiro não está na quantidade de recursos que arrecada, os quais vem aumentando significativamente, mas nas regras que são criadas, nos incentivos que foram concebidos, nos tratamentos que são dados, nos controles que foram implementados, e nas prestações de contas que são realizadas.
DAS REGRAS
No Brasil, ao contrário de muitos países desenvolvidos, a criação de leis, decretos, portarias, instruções normativas, regulamentos, resoluções, circulares e medidas provisórias beira a irracionalidade. Os membros dos poderes constituídos, dentro de suas respectivas áreas de competência, podem criar regras sem, praticamente, qualquer limite. Podem, inclusive, criar uma regra sabidamente inconstitucional, desde que não expressem isso oficialmente/publicamente e que obedeçam algumas formalidades legais. Isso é um problema transversal, que não está restrito ao Poder Executivo.
Essa prática, inclusive, gerou a figura da “inconstitucionalidade útil”, muito conhecida no meio tributário, que ocorre quando uma regra sabidamente inconstitucional é criada apenas para gerar um benefício de caixa temporário, enquanto a lei não for julgada inconstitucional ou enquanto não for revogada pelo próprio proponente (para não gerar um precedente contrário). A idéia de que apenas um número irrisório de pessoas irá questionar a constitucionalidade da regra, e que, desse número, apenas uma parte irá ser vitoriosa, acaba sendo um grande estímulo para a referida prática.
Esta facilidade de criar regras, sem qualquer limite, responsabilidade ou compromisso com os resultados que serviram de justificativa para legitimar a criação desses novos dispositivos, gera um ambiente institucional instável, oneroso e desmoralizado, que atrapalha o crescimento e o desenvolvimento do país. O cidadão desconhece todas as regras que existem e o próprio poder público não consegue fazer valer a legislação legal e infralegal vigente.
Portanto, é fundamental limitar o poder dos agentes públicos para criar novas regras, obrigações e procedimentos. Enquanto isso não for feito, o Brasil continuará sendo um emaranhado de dispositivos normativos.
DOS INCENTIVOS
Infelizmente, esse não é o único problema transversal do atual modelo. O poder público não pode prosperar e alcançar a alegada eficiência sem um mecanismo adequado de incentivos. Na verdade, é difícil falar de incentivos no poder público. No início, aliás, existe um grande incentivo para se ingressar na carreira pública, já que a estabilidade e o salário inicial, na maioria das vezes, superior ao pago pela iniciativa privada, são um grande convite. Ocorre que, uma vez dentro do poder público, todos, em regra, são tratados igualmente, sem metas, sem bônus, sem punições e sem distinções pela qualidade do trabalho e pelos resultados alcançados.
Nesse contexto, existe uma relativização do mérito, o qual é substituído por critérios como antiguidade ou formação acadêmica, para não falar no critério de filiação partidária, muitas vezes ilegalmente utilizado. Esse ambiente com incentivos equivocados distanciam o poder público do cidadão, pagador de impostos, o qual deveria receber a contrapartida pelo que pagou. Isso resulta, consequentemente, no permanente descontentamento da população brasileira com os serviços públicos. Para ilustrar esse ponto, vale citar o dado que 52% da população brasileira avalia a educação pública como sendo de regular à péssima (Fonte: Instituto Millenium/Instituto Análise, 2009). A saúde pública ainda é pior avaliada, sendo que 72% da população considera como sendo de regular á péssima (Fonte: Instituto Millenium/Instituto Análise, 2009).
Se não mudarmos os incentivos e se não implementarmos o mérito como ferramenta transversal de transformação, o governo continuará sendo muito ineficiente.
DOS TRATAMENTOS
Um dos pilares de qualquer sistema democrático é a igualdade perante a lei. A idéia de dar tratamento privilegiado a algumas pessoas em detrimento de outras já foi empiricamente comprovado como péssimo para o bom funcionamento dos governos. Com a possibilidade de haver desigualdade perante a lei, os grupos de interesse buscam, de maneiras legais e ilegais, conquistar o benefício que lhes interessa. Isso gera um círculo vicioso interminável, sem falar na brutal corrupção. Hoje, no Brasil, essa prática, infelizmente, é permanente. O próprio governo estimula, criando benefícios pontuais para determinados setores que o governo elege como prioritários.
Dessa forma, é necessário que, em todos os poderes e em todos os entes da federação, o tratamento seja idêntico para todos os cidadãos. Para tanto, não só as leis e regras devem ser gerais, impessoais e abstratas, mas a execução das atividades diárias do governo não deve ser influenciada por relações políticas, partidárias ou por conexões obscuras.
Isso não significa, entretanto, que o setor público não possa ter um mecanismo de “preços” para identificar questões mais urgentes e impedir que a necessidade premente de determinada pessoa seja sanada somente por meio do pagamento de “propinas”. Ou seja, o governo deve prever que a urgência para obter um documento pode ser diferente entre as pessoas. Dessa forma, deve incorporar no valor das taxas essa possibilidade, para que as pessoas não precisem buscar meios ilícitos para atender sua urgência. Novamente, isso deve ser feito de forma pública e transparente, para que todos os cidadãos possam ter a opção de obter um documento em menos tempo se pagarem um valor adicional.
Por estas razões, as leis e as regras devem ser impessoais, gerais e abstratas, sendo que todos os cidadão devem ser tratados com igualdade perante a lei.
DOS CONTROLES
Outro ponto que prejudica o bom desempenho da esfera pública é a inexistência de controles eficazes que impeçam o poder público e seus agentes de agirem com abuso de poder, de se desviarem da finalidade legalmente proposta ou de se locupletarem ilicitamente. Para que esses controles sejam eficazes, três requisitos são necessários: (1) as pessoas que exercem o controle não podem ter conflito de interesses ou falta de independência para denunciarem eventuais irregularidades; (2) deve haver transparência total no poder público para que os cidadãos comuns possam colaborar nesse controle; e (3) quando as irregularidades forem constatadas, a punição deve ser regularmente aplicada.
Ocorre que, na prática, esses três elementos, muitas vezes, não estão presentes. Os Tribunais de Contas, seja da União ou dos Estados, em sua maioria, estão cheios de indicações políticas. É evidente que uma indicação, baseada no critério de afinidade política, possui, por si só, um conflito de interesses insuperável. O indicado, que deveria ajudar a fiscalizar a pessoa que o indicou, já fica com a sua independência comprometida, sem falar na discutível capacidade técnica dessa pessoa para esse fim.
No caso da transparência a situação é a mesma. Em praticamente todos os poderes e em todos os entes federativos não existem informações claras, simples e diretas que permitam que o cidadão comum realize uma ampla fiscalização dos agentes públicos. O argumento de que os dados e as decisões são estratégicas são largamente utilizados, escondendo, muitas vezes, a verdadeira razão para impedir que o grande público tenha acesso aquelas informações. A complexidade do sistema e a falta de transparência fazem com que os controles existentes, na sua grande maioria, sejam limitados e questionáveis. A necessidade de uma lei que garanta acesso público às informações governamentais pode ser um avanço importante para implementar essa mudança de forma transversal.
Como demonstrado, os entes públicos devem ter controles claros, objetivos e impessoais, sem conflitos de interesses ou interferências políticas. Ademais, deve haver transparência para que a própria sociedade possa colaborar na importante tarefa de fiscalizar os poderes constituídos.
DAS PRESTAÇÕES DE CONTAS
Nos Estados Unidos, existe um termo muito utilizado na atividade pública. O termo “accountability” significa que um agente público pode ser pessoalmente responsabilizado pelas suas atividades, caso não cumpra com os objetivos de sua função. A existência de “accountability” em todas as esferas governamentais cria um mecanismo institucional que monitora e responsabiliza, individualmente, o cumprimento daquela atividade.
No Brasil, infelizmente, a responsabilização individual de cada servidor público é praticamente impossível. Com exceção dos casos de irregularidade ou falta grave, o exercício inadequado da função, seja por falta de compromisso ou acuidade, não gera maiores problemas. O indivíduo não é monitorado e o seu desempenho individual não é mensurado. A prestação de contas, quando existe, é genérica e muito superficial.
Assim, ao contrario do Brasil, onde basta não cometer uma falta grave para permanecer no poder público, nos países desenvolvidos, o servidor público deve comprovar que está exercendo sua função de forma devida e eficaz, sob pena de ser responsabilizado pelo exercício inadequado da função. A existência de “accountability” cria um ambiente no qual todos estão, de fato, preocupados em exercerem suas respectivas funções corretamente.
Pelo exposto, o Brasil deve adotar mecanismos de “accountability”, no qual todas as pessoas que trabalham no poder público tenham responsabilidade individual pela sua função e pelos resultados gerados.
CONCLUSÃO
Por todas as razões levantadas, enquanto as grandes reformas não forem realizadas, o Brasil pode fazer mudanças significativas em nível institucional que terão um efeito transversal importante. Essas melhorias institucionais são baseadas em princípios e valores como poder limitado, meritocracia, igualdade perante a lei, accountability, impessoalidade e transparência.
Infelizmente, parece que, mais uma vez, se enfrentará o problema de ausência de vontade política, pois essas mudanças dificultariam bastante a vida daqueles que querem utilizar o Estado indevidamente para benefício pessoal, seja para manter poder, privilégios ou recursos.
Obs: artigo originalmente publicado na Revista “Banco de Idéias”, do Instituto Liberal.
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